quarta-feira, 18 de julho de 2012

Ninho antigo



Ninho antigo[1]

Hoje, 25/9/66, fui até o mosteiro beneditino de Olinda a convite de Dom Gerardo Klages chegando às 9:30 hs., enquanto os sinos “Bento”, “Gerardo” e “Pedro”, tão meus conhecidos, bimbalhavam festivamente, convocando os fiéis para a missa das dez horas, a que assisti emocionado. Precedeu-a a “Tertia”, hora canónica, cantada, em coro, como somente os monges sabem cantar.
A missa foi solene, concelebrada por cinco sacerdotes que recitavam ou cantavam, simultaneamente, as orações, revestidos de longas casulas góticas, como hoje ordinariamente usam, enquanto a comunidade, em suas ricas estalas, assistia às cerimônias, envergando cogulas brancas sobre hábitos brancos.
Além de grande parte dessa missa ser rezada em língua vernácula, (também o Credo, o Prefácio, o Pater Noster e o Libera nos, quáesumus), chamou-me a atenção o Canon cantado pelos cinco concelebrantes, ao invés de recitado, submissa você, com era de praxe secular. Cantadas pausadamente, também foram as palavras da Consagração, o que me deixou admirado. Nunca eu ouvira coisa igual. É verdade que já assistira a outras missas concelebradas. Em Natal, no Palácio dos Esportes “Djalma Maranhão!, vi vinte e cinco bispos, piedosamente , concelebrando com a participação do sr. Núncio Apostólico e de Dom Antônio Zamora, enviado especial do santo Padre, mas nem por isso, voltei para casa tão maravilhado, como hoje, do mosteiro de São Bento. A liturgia beneditina é muito rica em beleza e fama.
Da mesma hóstia, que tinha dimensões de um prato de sobremesa e do mesmo cálice consagrado partilharam os cinco concelebrantes.
Faltam-me palavras para traduzir as emoções que o ambiente monástico e as cerimônias litúrgicas suscitam em mim. Após a missa, e a instâncias de Dom Prior, que fazia as honras da casa, participei do almoço da comunidade. Além das três dezenas de monges, noviços e postulantes, dez leigos – eu e nove jovens - nos assentamos às mesas, compartilhando de um almoço sadio, excelente. Todos os comensais guardavam silêncio, como é costume em mosteiros e conventos. Lia um monge trecho de certo livro de cujo autor o nome não guardei, mas, cuja doutrina social observei que era moderna.
Cantada em vernáculo a oração de agradecimento, como fora a que precedera o ágape, todos se retiraram. Passei a conversar com Dom Gregório e outros monges, entre os quais, Dom Gabriel Beltrão, velho amigo de 1918, num “hall” contíguo ao refeitório. Aqueles foram momentos de euforia para mim. Nem era para menos. Reviver tempos idos, vividos há meio século! Recordamos, então, a Dom Pedro Roeser e Dom Gregório Saupp, abade e prior respectivamente, àquele tempo distante. Como céleres fugiram os anos.
Daí, segui com Dom Gregório Klages, numa peregrinação de saudade, revendo sala por sala a começar pela sacristia, onde há enormes cômodas de jacarandá, ricas alfaias e retábulos do mais fino lavor em estilo barroco. Também fomos às galerias do claustro, em visita aos mortos queridos que lá dormem o sono da paz – Pax Christi – aguardando a parúsia sob lápides singelas: Dom Bonifácio Jansen, abade; Dom Gregório Saupp. Dom Vicente Blied, Dom Anselmo Fuchs, Dom Hidelbrando, Ir. Alexandre, Ir. Bartolomeu, velhos conhecidos meus, e outros.
Sabendo que Dom Agostinho Ikas, meu primeiro professor de latim, se achava doente, solicitei a devida licença para vê-lo. Levou-me até lá Dom Prior. Encontrei o  enfermo dando umas voltas no quarto, pois, sentindo-se melhor, precisava movimentar-se. O estado de saúde inspira sérios cuidados, mas, seu espírito é indomável. Não me reconheceu Dom Agostinho, mas, conversamos sobre o passado longa meia hora.
Voltamos, em seguida, ao claustro onde assentados num banco, me entreguei à leitura de alguns poucos capítulos de LUME DE PALHAS que estou ultimando, na esperança de publicá-lo. Essa leitura para Dom Gregório terminei-a no locutório do Mosteiro, onde ficamos mais à vontade.
Que alma grande Dom Gregório! Que paciência, que solicitude, que simpatia. Deixei em suas mãos FOME EXECRÁVEL, que aguarda o prelo, há muito t empo, pedindo-lhe que mandasse fazer uma censura extra-oficial, por algum monge. Outros opúsculos meus – O FACHO, EM PROL DA IGREJA, VELA DE SEBO, O LIVRO PROIBIDO, A SOMBRA E OUTROS, deixei-os para serem encadernados. Disseram-me o Prior que um noviço faz esse trabalho com muito bom gosto.
Despedi-me, então agradecendo as muitas atenções a mim dispensadas. Poderia, no comenos, ter dito a Dom Gregório, meu anfitrião, como Pedro, no altar do tabor, disse a Jesus que se transfigurara ante seus olhos deslumbrados: “- É bom ficarmos aqui, Senhor!”
Retirei-me com vivo propósito de voltar àquele reduto de estudo, oração, paz e trabalho, tão cedo quanto possível. Será para mim novo, e grande prazer.
Muito obrigado, Dom Prior.


[1] Publicado em Lume de Palha e Áscuas, 1969

domingo, 8 de julho de 2012

Frustrações



Frustrações[1]


Todos temos, desde a infância, inclinações e pendores, aspirações e sonhos que indicam vocação provável. Provável, não certa. Os espíritos privilegiados, apesar da pouca idade, têm ideais profundos, largos, fortes, consoantes com a grandeza da sua capacidade e destinação. Os que nasceram, porém, para humildes destinos alimentam aspirações modestas, sonhos acanhados.
            Não fugindo à regra, também tive aspirações e anseios delimitados pela pequenez da minha personalidade. Aos dez anos, desejando o sacerdócio, - veleidade de criança? Influência de pessoas da família? – ingressei no mosteiro beneditino de Olinda, sob os cuidados de dom Pedro Roeser e de Dom Gregório Saupp, respectivamente, abade e prior da comunidade. Desfeitas as possibilidades de continuar na escola de oblatos, em face dos acontecimentos finais da primeira grande guerra, passava-me, em princípios de 1919, para a Escola Agrícola São Sebastião, em Jaboatão, àquele tempo, dirigida pelo Vicente Priante, ao depois, bispo de Corumbá, e por outros salesianos. Ainda desta feita invalidaram-se-me as tentativas para alcançar o sacerdócio religioso, aliás, por tola desinteligência surgida com uma carta de minha mãe ao Padre Diretor. Imediatamente deixei a Escola Agrícola “a fim de que não saísse mais tarde com a consciência perturbada”, como me aconselhou o próprio Pe. Priante.
            Insistindo contra a correnteza do destino, em março de 1922, levado pela mão bondosa de Dom Antônio dos Santos Cabral, removido de Natal para Belo Horizonte, vi-me seminarista da arquidiocese de S. Paulo, entregue aos zelos dos cônegos regulares Premonstratenses, no seminário menor de Pirapora, junto ao Senhor Bom Jesus, sete léguas de distância da Capital paulopolitana. Ali acalentei as modestíssimas aspirações da minha juventude: primeira, ser congregado mariano; e o fui com grande gáudio, ainda que indigno. A segunda; ser sacristão do seminário. Teria algumas pequenas regalias, como: levantar às 4:30, (meia hora antes da comunidade), - sempre gostei de ver nascer o dia; - lidar com as alfaias, vasos sagrados e paramentos, bebericar resto de vinho das galhetas... Esse desejo dilui-se de chofre com a designação do meu colega de turma, Mário Viana, enquanto eu era nomeado fiscal dos menores, cargo de muita confiança. E também fui chantre, dada a suficiência da minha voz e meu grande amor pelo canto gregoriano.
            Já no Seminário Provincial de São Paulo, sabiamente dirigido por Padre Alberto Teixeira Pequeno, e por outros professores, padres seculares, durante o curso trienal de filosofia, aspirei com ardor dirigir a Schola Cantorum do seminário. Aqui é bem evocar o nome do nosso velho Maestro Fúrio Franceschini, uma das grandes culturas musicais da época, Malograda quimera... Antes de terminar o ano de 1928, com grossas lágrimas nos olhos, deixava de vez a batina e com ela os sonhos dez anos vividos na persecução do sacerdócio, para o que me não destinara Deus. Ainda desta última vez, fi-lo com iniciativa alheia, ou seja, a conselho do padre espiritual do seminário, Paulo de Tarso Campos, hoje venerando arcebispo resignatário de Campinas. Ele achava que com meu gênio impulsivo, invés de aproximar de mim os meus futuros paroquianos, afastá-los-ia. Assim, seria contraproducente meu apostolado... Certo de que “quem obedece não erra”, vinte dias depois de ouvir tão grave conselho, com a anuência e plena aprovação do Reitor, Pe. Pequeno, deixei o seminário de S. Paulo.
            Desejos, aspirações, esperanças carinhosamente alimentadas de um dia vir a ser sacerdote, tiveram pronto fim, diante da nova orientação que tive que dar à minha vida. Então, enveredei por outros caminhos muito diversos ao longo dos quais as garras do destino me vêm arrastando até hoje, e que palmilho de bom ou mau grado, inter angustias...
            Entrado na velhice, chego a ter a impressão de ainda ser aquele seminarista pobre de antanho, rude e acanhado, tantos e tão profundos foram os sulcos abertos n’alma, ao tempo feliz do seminário, que nunca me foi possível desmanchá-los inteiramente.
            Ninguém sabe para o que nasceu. Muitos ideais da mocidade jamais se concretizam. Poucas vezes realiza-se o homem. Outras muitas não o consegue. E torna-se o homenzinho um frustrado... Ah! As minhas frustrações...
            Dolorosa seqüência de ilusões perdidas, revividas em vaporosas cismas que diante dos meus olhos empanados passam vagarosamente em procissão dolente... Reminiscências que embalsamam as chagas da velhice. Apiede-se Deus dos que tomaram caminho errado e terão que palmilhá-lo... Até o fim!
Maio de 1969


[1] Últimas Crônicas, 1970

domingo, 1 de julho de 2012

De camarote


De camarote[1]

             Fato inconteste é esse; os brasileiros estão divididos. E quanto maus isto é certo, tanto mais digno de lástima. A imprensa escrita, falada, radiofonizada, mesmo televisionada, revela profundas dissensões existentes e, é de se supor, também ódio.
            Já está nos causando mal-estar, se não fosse asco, a simples leitura das folhas diárias e revistas, onde, repiso, se estereotipam tantas desavenças, tantas incompreensões e até arengas ridículas sobre assuntos graves. Ódios que não são mais surdos nem mudos. E isto na política, entre aficionados e profissionais; e isto no seio da religião, entre ilustres dignitários e prelados que, sentindo-se donos da verdade, não se cansaram ainda de dar este mau exemplo aos seus diocesanos, e a todos enfim. Já não aludo a algumas comunidades religiosas que se tornaram em antros de insubordinação e, em escândalo, alguns colégios e cenóbios. Misérias, ciumadas, e pecados feios et reliqua, sempre houve no mundo, mas, ao menos havia os muros altos dos mosteiros, quase sempre engastados em lugares de acesso difícil, afastados dos burgos, alem do que, a máscara do silêncio ou um disfarce qualquer amenizava para o grande público as vexatórias situações ocasionais, Os religiosos, sob o pretexto de apostolado, são os mais andejos e extrovertidos, enquanto dos rostos as máscaras vão caindo com a freqüência das batidas do coração humano, e muitos se entregam a ações que ferem o decoro social, escandalizando gregos e troianos. A linguagem por alguns usada já não é de doutrinação e de catequese. É simplesmente desafio e ameaça. E todos vivemos assim assustados, aguardando a todo momento o “estouro da boiada”...        
Para certos profetas hodiernos, toda riqueza é injusta. Todo pobre, sem distinção, é Cristo vivo; todo desajustado e marginalizado, um santo em potencial. Toda autoridade, opressora e abusiva. Revivências da idade patrística, quando Cristo ainda não ingressara nas diversas camadas sociais, mas hoje ninguém ignora Cristo. 
Quem está gozando essa lamentável balbúrdia são os nossos “queridos irmãos separados” ou como quer que os chame o CELAM[2].
De camarote, eles assistem as águas de um novo mar vermelho se abrindo, dividindo-se para tragar uma das facções em que se dividem os católicos romanos. Eles vêem os campos da IGREJA MÃE comburidos pelo sol das dissensões e de estapafúrdias inovações, enquanto chuvas generosas regam, incrementando suas atividades apostólicas, como se fora ”tanto pior, melhor”. Por tudo isto e pela falta de disciplina e de fé de muitos – fiéis e alguns pastores – é que um senhor ianque há poucos dias, no Recife, teve a petulância de vaticinar que em breve seria o Brasil o maior baluarte protestante da terra, paraíso das quinhentas seitas que congregam os muitos milhões de nossos “irmãos separados” hoje “ecumenicamente” unidos a nós, por vínculos de amor e de paz. Aliás, ele, o bom pastor pentecostal, se insurgia na entrevista contra o ecumenismo romano, tal como a todos é proposto. O certo é que enquanto, abrindo os braços, fazemos-lhes concessões e mais concessões, mais perdemos terreno e nos protestantizamos.  Daí as conclusões pressurosas do pastor, Protestantes de todos os matizes, mações de todos os graus, espíritas de todos os planos; hora é de congraçamento, de ecumenismo. É momento do abraço fraternal.
Não que eu não deseje ver aproximar-se o dia venturoso da união de todos os cristãos debaixo do cajado de um só Pastor – o Bom Pastor! Nem que em dia algum haja me olvidado das palavras do cântico de Páscoa: Onde a caridade e o amor, aí Cristo!  Não menos do versículo que se segue: “Ne nos mente dividamus, caveamus[3]. Não. Nada disto.
Vemos com a clareza meridiana dos fatos, que nesta altura dos acontecimentos, as divisões são tantas, tão graves e tão profundas, entre católicos e católicos que até o conteúdo daquela mensagem perde o sentido das coisas reais. Saíram do estreito ambiente da “mente” pás as folhas dos diários do mundo, e católicos. Será que ninguém viu o trecho da epístola paulina, onde se lê: “não quero contender em palavras porque para nada isto serve, senão para aborrecer os que ouvem?” É este aborrecimento, este insofreável enjôo, este asco que muitos estão a sentir, vendo padres se digladiando pela imprensa com outros padres, bispos e arcebispos contra opiniões, pareceres e ação pastoral de outros arcebispos e bispos, já não no campo fechado da teologia dogmática, pastoral ou do direito canônico, mas no da sociologia e economia política, matérias em que todos andamos às apalpeladas, ainda hoje...
Quantos, dizendo buscar o bem alheio, procuram o seu próprio? Há tanta vaidade em tudo... Fale o Eclesiastes: “Tudo é vaidade”. Fale o sábio: “Todo homem é mendaz”
Então? Trabalhar em silêncio por mais uma justa distribuição das riquezas é muito mais consentâneo com o bom senso! A salvação do mundo está no Trabalho, Estudo e Oração. Quem mais se exterioriza menos fica senhor de si. Para que tantas declarações à imprensa? Para que tantas viagens dentro e fora (já não digo das circunscrições diocesanas), do país, senão dos quatro cantos do mundo? Não bastavam as viagens ao redor do quarto de dormir? Adverte o autor da Imitação de Cristo[4] que de suas andanças “sempre volto menos homem”. E lá o anexim: - “Quem anda muito pouco se santifica”.
Sem faltar com o devido respeito a tão veneráveis autoridades eclesiásticas, regularmente constituídas, nos perguntamos: Onde está o Sr. Núncio Apostólico que não faz encerrar estas intermináveis questões? Falta-lhe conhecimento das tristes ocorrências? Falta-lhe autoridade moral para dizer como José do Egito: “Ne irascamini in via?”[5] Não arenguem...
Paternalmente, os pais impõem silêncio aos filhos que gostam de altercações e de briguinhas ridículas. Ou será “que é “cousa superada” a verdade do aforismo: “ – Roma falou, acabou-se a questão?”
Eis o que toda a população brasileira aguarda com ansiedade: o fim dessas contendas. A volta da disciplina que há muito vem desaparecendo do mundo cristão para gáudio dos inimigos da Igreja em crise, e vexame dos que a amam agora mais do que nunca.
[1] Últimas Crônicas, 1970
[2] Conselho Episcopal Latino Americano (Nota de Editor)
[3] Verso do Hino Ubi Caritas: Não vamos ser divididos em  mente”. (Nota de Editor)
[4] Obra atribuída ao padre alemão Tomás de Kempis, publicada no século XV. (Nota de Editor)
[5] Gênesis 45,24:”Não contendais pelo caminho” (Nota de Editor)