Frustrações[1]
Todos temos, desde a infância, inclinações e pendores, aspirações e
sonhos que indicam vocação provável. Provável, não certa. Os espíritos
privilegiados, apesar da pouca idade, têm ideais profundos, largos, fortes,
consoantes com a grandeza da sua capacidade e destinação. Os que nasceram,
porém, para humildes destinos alimentam aspirações modestas, sonhos acanhados.
Não fugindo à regra, também tive
aspirações e anseios delimitados pela pequenez da minha personalidade. Aos dez
anos, desejando o sacerdócio, - veleidade de criança? Influência de pessoas da
família? – ingressei no mosteiro beneditino de Olinda, sob os cuidados de dom
Pedro Roeser e de Dom Gregório Saupp, respectivamente, abade e prior da
comunidade. Desfeitas as possibilidades de continuar na escola de oblatos, em
face dos acontecimentos finais da primeira grande guerra, passava-me, em
princípios de 1919, para a Escola Agrícola São Sebastião, em Jaboatão, àquele
tempo, dirigida pelo Vicente Priante, ao depois, bispo de Corumbá, e por outros
salesianos. Ainda desta feita invalidaram-se-me as tentativas para alcançar o
sacerdócio religioso, aliás, por tola desinteligência surgida com uma carta de
minha mãe ao Padre Diretor. Imediatamente deixei a Escola Agrícola “a fim de
que não saísse mais tarde com a consciência perturbada”, como me aconselhou o
próprio Pe. Priante.
Insistindo contra a correnteza do
destino, em março de 1922, levado pela mão bondosa de Dom Antônio dos Santos
Cabral, removido de Natal para Belo Horizonte, vi-me seminarista da
arquidiocese de S. Paulo, entregue aos zelos dos cônegos regulares
Premonstratenses, no seminário menor de Pirapora, junto ao Senhor Bom Jesus,
sete léguas de distância da Capital paulopolitana. Ali acalentei as modestíssimas
aspirações da minha juventude: primeira, ser congregado mariano; e o fui com
grande gáudio, ainda que indigno. A segunda; ser sacristão do seminário. Teria
algumas pequenas regalias, como: levantar às 4:30, (meia hora antes da
comunidade), - sempre gostei de ver nascer o dia; - lidar com as alfaias, vasos
sagrados e paramentos, bebericar resto de vinho das galhetas... Esse desejo
dilui-se de chofre com a designação do meu colega de turma, Mário Viana,
enquanto eu era nomeado fiscal dos menores, cargo de muita confiança. E também
fui chantre, dada a suficiência da
minha voz e meu grande amor pelo canto gregoriano.
Já no Seminário Provincial de São
Paulo, sabiamente dirigido por Padre Alberto Teixeira Pequeno, e por outros
professores, padres seculares, durante o curso trienal de filosofia, aspirei
com ardor dirigir a Schola Cantorum do seminário. Aqui é bem evocar
o nome do nosso velho Maestro Fúrio Franceschini, uma das grandes culturas
musicais da época, Malograda quimera... Antes de terminar o ano de 1928, com
grossas lágrimas nos olhos, deixava de vez a batina e com ela os sonhos dez
anos vividos na persecução do sacerdócio, para o que me não destinara Deus.
Ainda desta última vez, fi-lo com iniciativa alheia, ou seja, a conselho do
padre espiritual do seminário, Paulo de Tarso Campos, hoje venerando arcebispo
resignatário de Campinas. Ele achava que com meu gênio impulsivo, invés de
aproximar de mim os meus futuros paroquianos, afastá-los-ia. Assim, seria
contraproducente meu apostolado... Certo de que “quem obedece não erra”, vinte
dias depois de ouvir tão grave conselho, com a anuência e plena aprovação do
Reitor, Pe. Pequeno, deixei o seminário de S. Paulo.
Desejos, aspirações, esperanças
carinhosamente alimentadas de um dia vir a ser sacerdote, tiveram pronto fim,
diante da nova orientação que tive que dar à minha vida. Então, enveredei por
outros caminhos muito diversos ao longo dos quais as garras do destino me vêm
arrastando até hoje, e que palmilho de bom ou mau grado, inter angustias...
Entrado na velhice, chego a ter a
impressão de ainda ser aquele seminarista pobre de antanho, rude e acanhado,
tantos e tão profundos foram os sulcos abertos n’alma, ao tempo feliz do
seminário, que nunca me foi possível desmanchá-los inteiramente.
Ninguém sabe para o que nasceu.
Muitos ideais da mocidade jamais se concretizam. Poucas vezes realiza-se o
homem. Outras muitas não o consegue. E torna-se o homenzinho um frustrado...
Ah! As minhas frustrações...
Dolorosa seqüência de ilusões
perdidas, revividas em vaporosas cismas que diante dos meus olhos empanados
passam vagarosamente em procissão dolente... Reminiscências que embalsamam as
chagas da velhice. Apiede-se Deus dos que tomaram caminho errado e terão que
palmilhá-lo... Até o fim!
Maio
de 1969
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