domingo, 18 de novembro de 2012

Coisas de Velho


Coisas de Velho[1]

E ser-se novo é ter-se o paraíso.
É ter-se a estrada larga, ao sol, florida,
aonde tudo é luz e graça e riso.

Florbela Espanca

Por que os entrados na velhice nunca procuram abordar temas do futuro, antes, dão-se ao vezo de ventilar sempre coisas do passado e, preferentemente, do passado longínquo? Naturalmente, é que o sexagenário, mais ainda o setuagenário e o octogenário não esperam viver mais. Esperam, isto sim, esperam pela morte, já que a verdade é fatal: “quem de moço não morre, de velho não escapa”.
            E começam a viver os pródromos da eternidade... Como raramente, a consciência têm-na tranquila, fogem de pensar nos dias porvindouros. Assim, lançam suas saudades, de melhoras para seu reumatismo, sem cuidar de que estes são males incuráveis. Começam, pois, a escrever “memórias”...
Assim também o sinto, já que entrei no rol dos que estão “dentro dos 60”. Por isso mesmo, temas da minha mocidade me empolgam e inibem de dar-me às coisas que virão ou não virão nunca para mim.
Um amigo (sincero? – não sei) com dureza, observou-me:
- Por que você está sempre a ventilar coisas da religião? Não sabe discorrer sobre outro assunto?
- Cada um fala do que conhece e ama, da abundância do coração, repliquei. E minha infância se confunde, dentro da minha memória, com a religião da qual sonhei um dia ser ministro.
Ele, também, da minha mesma idade, vive a reviver episódios da sua mocidade... E nem dá por isto.
Aqui faço lembrada a palavra do Pe. Daniel Lima, citada por mim, a páginas tantas de Vela de Sebo: -“Ter sido é uma forma de ser ainda. O passado não tem sentido como tempo morto. Há em mim, vivo e presente, tudo o que fui e o vivi, tudo o que amei e odiei, desde que nasci”.
A infância e a mocidade são a nossa ilusão, a realidade, que os fugiu tão cedo, e a substância imponderável da nossa própria existência. O velho vive do passado como a criança vive do futuro, que presume ser de ouro e luz, o que nunca acontece. Tudo isto é tão natural que não merece ser observado. São as compensações da vida.
Então, o que entrou na velhice começa a falar como velho, criando memórias e vivendo lembranças com que pensa refazer a sua gasta e dilapidada existência e – o que é muito pior – compenetra-se, fatuamente, de que pode servir de modelo a seus filhos e a possíveis leitores seus. Vaidade? Orgulho ou coisa pior? Nada pior que o orgulho. (A avareza é mais desumana). É quando se torna “moralista impenitente”, malgrado sua ética seja de palavras que o vento leva mais depressa do que enxuga uma lágrima de criança.
            Um homem cuja cova já começam a cavar, embora tenha alguns anos ainda para fazer as asneiras próprias da idade senil, é  um homem que não suporta encarar o futuro. Sabe que o seu porvir é aquela cova rasa. Começa, então, a lançar olhares retrospectivos, teimosos, obstinados. Sua motivação é a mocidade que morreu.
Somente os poetas (e não todos) se dão ao luxo de pensar em coisas aziagas, merencórias e tétricas. O comum dos homens encanecidos ou depilados, esses querem voltar à álacre mocidade, num esforço infausto e improfícuo, mas, persistente. Nisto, o seu valor único. É a volúpia das coisas impossíveis...
Ah, Fausto... Ah, Fausto! Mefistófeles, no romance de Goethe, prometeu ao “homem-símbolo” dos que se tornaram impotentes, a volta, o tão suspirado regresso aos hábitos da mocidade. Ilusão!...
Os homens vividos, os gastos de todas as idades, sempre nutriram esse sonho tão irrealizável como a mais linda das quimeras. O moto-contínuo e a alquimia medieval simbolizam bem as ilusões do homem. E continuaram os que hão de vir a nutrir o sonho até que o mesmo se transmude em horrível pesadelo: a morte!
Não são, todavia, apenas os velhos entrados em decrepitude que buscam a fuga de si mesmos pelo derivativo do sonho. A juventude, também ela é afeita à ilusão. E, por isso, sonha com o futuro que lhe sabe a flor e o mel. Quer a mocidade chegar à plenitude dos anos para se tornar detentora do ouro e da glória, do mando e da felicidade. É a vida, que nisso tudo se resume: amor, pão e liberdade. Por isso sonham. Mas todos sonhamos porque sabemos todos que, sem a ilusão e as mentiras inocentes que nos pregamos a nós mesmos, não seria a vida coisa possível de viver.
Houve alguém, por ventura que, rindo e cantando buscasse a morte? Ao invés, cheios de horror, todos fogem do gélido amplexo da terrível parca. Contam, todavia, os agiólogos que os cristãos do Império Romano enfrentavam de ânimo sereno, por Amor de Cristo, leões hienas e panteras. E cantavam:
“-Podes, ó Cesar, arrancar-nos a pele do corpo, rasgar-nos as carnes, moer-nos; não conseguirás arrancar dos nossos corações a fé”.
Somente os idealistas, cheios de fé arrebatados da esperança, ensandecidos pela caridade, lograrão conformar-se com a morte. Nós outros morremos porque “quem não pode viver, morre”, explica o anexim. Aqui não há dilema. Há destinação.
Os suicidas buscam o descanso, o oblívio que não existe para quem se insurge contra a natureza. O aniquilamento a eternal inércia seria o império da injustiça. Aquele que tem direito à glória, não pode ser nivelado com quem mereceu a geena[2], pelo abuso da sua liberdade. E como abusamos dela...
A vida futura existe porque é anseio da alma, mas, não é repouso. Não é inatividade absoluta. Não há nirvana. A vida futura é atividade em plenitude, atividade sem esforço, mas atividade intensam eterna.
Não é de conceituação fácil a eternidade onde não haverá “potência”, mas somente “ato”. Êxtase sem fim. Todos em Deus!
Enquanto lá não chegarmos, sonhemos. É tão bom sonhar.


[1] Publicado em Lume de Palha e Áscuas, 1969
[2] N.do E. 1 Inferno, na religião hebraica. 2 Dor intensa; tortura.

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Ainda no casório



Desiludido[1]
            Estou desiludido. Não estou escandalizado. Estou desiludido. Mais de cinqüenta anos decorreram para mim em cego e ledo engano. Pensava que monges, padres, bispos e freiras eram todas pessoas merecedoras de profunda veneração e respeito. Quando alguém queria impor-me como realidade que poucos sacerdotes eram dignos daquela veneração e respeito, eu reagia com todo o calor de um noviço...
            Vivi longos anos em ambientes com jesuítas, padres do Espírito Santo, como muitos outros. Religiosas, como Dorotéias, Irmãs do Amor Divino, de Sant’Ana, Vicentinas. Conheço, pois muitos homens e mulheres de vida espiritual. Malgrado abe-los humanos, defectíveis, acreditei piamente que os bons eram muito mais numerosos do que os merecedores de restrições graves. Eis que dia a dia mais se acentuam no meu espírito os contornos reais e objetivos da verdade algo espantosa. Hoje (perdoem-me monges, frades, bispos e outros) tenho outra convicção: que, infelizmente, não são tantos os que merecem as homenagens do povo católico. O desrespeito que muitos carismáticos dão às prescrições superiores, expostas nos artigos e parágrafos do Direito Canônico, Encíclicas, Constituições Apostólicas e Mandamentos, é de estarrecer a quem os observa. A publicação da Humanae Vitae[2] o demonstrou. Não era sem razão que Dom Marcolino Dantas, falecido arcebispo do Natal, em seu longo pastoreio, nunca escreveu uma pastoral Sabia que muitos dos seus padres não dariam nenhum valor. Iriam, isto sim, criticá-lo. Pois, há tantos fariseus ainda hoje... Talvez nem a lessem.
            Um exemplo. Bispos, padres, leigos, todos sabem que casamento de padre deve ser a portas fechadas, com restrito número de testemunhas. Nada de publicidade escandalosa, de festejos nupciais dentro ou fora da liturgia. No entanto, que se tem visto entre nós? Justamente o contrário, com pleno conhecimento do Ordinário e seu assentimento. Até com sua participação! Padres ensandecidos pelos calores genésicos, exacerbados em repetidas doutrinações sexuais, julgam-se doutores, porquanto cursaram dois anos de teologia pastoral; ei-los que se deixam levar de paixões vesânicas...  Então, abandonam altares que provavelmente macularam, macularam tantas vezes – só Deus sabe – e hoje com a maior impaciência aguardam o ditoso, o venturoso dia do consórcio, a tão decantada noite de núpcias, a gostosa lua-de-mel. E a Igreja se enche de convidados e “piedosos” assistentes que vêm “edificar-se” com o comportamento modelar do novo casal que vai receber as bênçãos rituais derramadas a fluxo sobre almas e corpos dos nubentes (ninguém pode separar corpo e alma, dizem os entendidos), principalmente, nas festas nupciais, quando nenhuma faculdade da alma, nenhuma molécula do corpo dos noivos, nem o mais pequenino nervo, nenhum dos sentidos externos (açaimados durante os longos anos da espera) pode estar ausente à ocasião propícia e justa a seu desarrollo.  Mas, mais comum, talvez, seja tratar-se de contestar situações envelhecidas...
            Como é evidente, casamento de padre não edifica ninguém, sabendo-se embora que, se a teoria em que se especializou for posta em prática, esse casamento será ideal; o sacerdote casado, um maridinho nec plus ultra[3]; a mulherzinha do padre, um modelo de virtude matrimonial, - a esposa perfeita descrita pelos médicos psicanalistas ou especialistas em sexologia. Seja, como era de esperar-se. Eu, todavia, não empresto a minha credibilidade a nada disto. Lembrei-me a opinião de Fernando Diaz-Plaja, quando escreveu: “Durante anos o homem comprime os desejos que pugnam por vir à superfície, e quando a explosão se produz, está tão fora do normal como fora do normal era sua retenção”. Por tudo isso fico esperando o quase certo desarranjo familial, como numa vaquejada os assistentes em suspense esperam a queda da rês inexperiente. Talvez muitos não cheguem, a viver juntos cinco anos. Talvez alguns cheguem ao desquite e a proporem adoção do divórcio a vinculis. Vamos para frente.
            Não estranharei quando souber do casamento de alguns – somente alguns? – bispos. E por que não? É uma questão de Roma consentir. Facilitar. Também eles têm corpo geralmente bem alimentado e precisam dar exercício às glândulas. Na antiguidade cristã. S. Paulo recomendava que “o bispo seja marido de uma só mulher”, donde se pode inferir que já tivessem alguns, além da legítima, uma “sucursal”. Então, que é que há? Não poderia eu, mísero pecador, ir de encontro aos ensinamentos paulinos que chamou “grande” o sacramento do matrimonio. Mas, em relação ao Cristo e à sua Igreja, não o faria nem em sonho. E corroborando sua asserção, S. Paulo reafirma com firmeza: “É melhor casar-se que pegar fogo”. Pois, quem quiser case. É bom! Eu casei duas vezes, e o resultado aí está: treze filhos e vinte e cinco netos. E, digo como quem diz a verdade: nunca pensei em separar-me de minha mulher por que ela é uma santa. Não. Não é santa, mas é muito paciente. Muito!  



[1] Últimas Crônicas, 1970
[2] Carta encíclica emitida pelo papa Paulo VI em 25/jul/1968 versando sobre a Regulação da Natalidade. (N. do E.)
[3] Insuperável, Aquilo que não pode ir além. (N.do E.)

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

E eu me declaro marido e mulher...


 


Que mais?[1]

Revelou noticiário recente que as Igrejas de sete – número apocalíptico – sete países ocidentais da Europa dirigiram veemente memorial exigindo de Roma o cancelamento do celibato eclesiástico, como medida que fere os ensinamentos bíblicos... pois, não? Mas ninguém se admire disso, porque algumas Igrejas do Brasil acompanharam-nas no pedido, embora sem invocarem a ilegalidade da medida, há tantos séculos adotada, ou argumentando irredutibilidade de tal prática aos dispositivos escriturísticos.
Seria o celibato estado contrário à natureza do homem? Coisa verdadeira, ao menos para alguns, ou mera farsa secular? Antes do mais, diga-se que o celibato é o dom de Deus, é graça especial concedida aos que a suplicam e fogem em tempo hábil do mundo, do diabo e lutam valentemente contra suas torpes inclinações. Difícil coisa, não? Dificílima por certo e... quase inacreditável.
Hoje há indiscutivelmente, razões bastantes e fortes para a proscrição do celibato, mas deve haver (ou ter havido) razões mais ponderosas para que ele não venha abaixo, deixando de trazer o máximo desafogo para a grande maioria dos padres, que anseiam por esse dia. Não direi de quem será a vitória nessa contenda empolgante. E não digo, porque, em livro publicado há alguns anos, asseverei, sem medo de errar, que jamais o CÂNON da missa seria recitado em língua vernácula nem o seriam as fórmulas sacramentais. Pois, errei, grosseiramente, na minha predição. Agora, portanto, não me aventuro a afirmar o que já parece quase certo. Como o problema não é meu, nem me afeta particularmente, o que as Congregações Romanas e os sínodos episcopais definirem louvo e aplaudo, parafraseando o que tanto se disse outrora: “Roma falou, liquidou-se a contenda”.
A mim, (que não sou do contra, sistematicamente), me parece que quanto mais concessões se fazem à besta encastelada nos refolhos do homem, mais se fortificam os inimigos que põem cerco à colina do Vaticano, quando querem a todo preço plebeizar o clero, envilece-lo.
Pedro repetidas vezes dormiu, profundamente, enquanto o Mestre sofria as agonias de morte no Monte das Oliveiras. Paulo VI, porém, não pode dormir no timão da Parca[2].  Alguns problemas do pós-concílio assemelham-se a nós górdios[3] que a ele cabe cortar de vez, se desmancha-los não lhe for possível. Tarefa delicada e dificílima porque quem os vem dando é o inimigo avernal[4], que é muito mais esperto, mais matreiro e mais inteligente do que qualquer dos homens. Entretanto, não devemos ficar apavorados com isto porque Miguel ainda preside às milícias angélicas e o seu brado ainda é o mesmo dos princípios da criação; -“Quem como Deus?”. A luta vem sendo árdua, tremenda, apocalíptica para o aggiornamento[5] da Igreja, mas a vitória final será d’Aquele Que É. Há poucos dias, acordei de uma sesta com o rádio dando notícias do momento. Concentrei as potências de minha alma e sintonizei os ouvidos, quando o repórter disse da existência de um papa de nome Clemente XV, na cidade de Avignon, se não estou errado. Pilhéria de mau gosto? Certamente. Deve ser esta notícia alguma licença jornalística, mero sensacionalismo. Por isto não quero acreditar. Mais plausível me parece que seja sandice de algum carismático atacado de esquizofrenia, paranóia ou debilidade mental. Ou estamos diante de novo cisma? Milhares de boletins naquele sentido foram espalhados em Roma e em terras de França, segundo se diz. De nacionalidade francesa, Clemente XV seria o papa verdadeiro, enquanto Paulo VI, anti-papa, um usurpador!... Isso seria o máximo das humilhações afligidas à Igreja de Deus pelos seus inimigos indormidos, liderados talvez por alguns religiosos delirantemente “ultra-avançados”, bomba mais arrasadora do que qualquer das que os mortais já inventaram. E que dizer da charmosa, piedosa, instruída religiosa holandesa que se candidatou há pouco às honras sacerdotais? Ela não disse na entrevista, mas dentro do seu coração talvez esteja sonhando com o episcopado e... talvez mais... Quod Deus avertat![6]






[1] Últimas Crônicas, 1970
[2] Deusa grega que controlava o destino; A morte. (N.do E.)
[3] Lendário nó de difícil desenlace atado por Górdio, rei da Frígia. (N.do E.)
[4] Relativo ao Inferno.( N. do E.)
[5] Atualização (N.do E.)
[6] Que Deus nos livre (N. do E.) 

domingo, 19 de agosto de 2012

Impertinências


Impertinências...[1]
            Impertinências minhas...
            O homem sofre com a chegada da velhice as mais decepcionantes revelações. Não raramente o liberal se torna avarento; o aparentemente morigerado e de costumes puros, relaxa-se a ponto de não controlar palavras nem ações. Até insultos da inveja ele tem de suportar. Assalta-o uma inveja descomedida dos moços. Daí as incompreensões e censuras. Rejuvenescer para ele é constante obsessão. De hipócrita torna-se cínico, pois para ele tudo é natural...
            Quando moço, eu via tudo cor de rosa: todas as mocinhas muito puras; todos os rapazes muito bem intencionados. Todos os padres, homens de bem, honestos, interessados somente nas coisas da Igreja, zelosos pelas coisas de Deus. As freirinhas para mim eram todas umas santas. Incapazes de um gesto agressivo, de uma ação feia, dignas de todo respeito e consideração. Mesmo as das santas-casas-de-misericórdia. As mães de família sempre me pareciam honestas e respeitadoras do nome do marido. Os maridos, na minha ingenuidade, eram sempre perfeitos cavalheiros, incapazes de atos desabonadores, canalhas. Todos os portadores de títulos de profissão liberal, como médicos, advogados, guarda-livros, todos cumpriam integralmente o juramento da colação de graus.   Até os comerciantes para mim eram honestíssimos. Todos os homens eram meus irmãos.
            Anos vindo e dilapidando meu frontal, branqueando bigodes e barba. Eu mesmo sofrendo os desgastos da idade, não somente no físico como no intelectual e moral,  ao ponto de reconhecer hoje, perfeitamente, que vida longa não traz nenhuma vantagem ao homem, senão em casos raríssimos.
            A quantos sacerdotes ou professores, julguei incapazes de certos gestos, modos de ver que a mim repugnavam como menos corretos, perfeitos, e hoje, principalmente, com as “inovações” do pós-concílio, terríveis revelações a todos decepcionam.
            Declarações à imprensa de bispos e padres me têm feito estarrecer. Clérigos que, assim, se me revelam despidos de qualquer espírito eclesiástico, homens mais profano que qualquer membro do laicato.
            Eu conheci, faz alguns anos, um sacerdote que me parecia muito menos padre que sua irmã... E como este (que é com Deus), muitos padres têm havido neste planeta. Depois, então, que deixaram de lado a batina para vestir modestos slacks[2] que proscreveram a tonsura eclesiástica e, assim, podem freqüentar todos os meios ambientes) ainda recitam o breviário abreviado? Chego até a duvidar! e baniram atitudes que tão bem os caracterizavam, as coisas se tornaram insuportáveis, pois até o canto litúrgico recém adotado irrita pela sua descaracterização do sagrado.
            Chego agora ao que nunca supus chegasse: a desejar que a Santa Sé acabe de vez com a medida disciplina do celibato, porque essa coisa “celibato” tornou-se inanis et vácua, [3] na mais lídima expressão bíblica, para muitos “celibatários”.
            Contavam, há oitenta anos, que um vigário velho da terra de meus avós subiu certo dia ao púlpito de sua matriz com voz repassada de amargura, assim falou: “- Meus irmãos: Foram dizer ao sr. Bispo de Olinda que vivo amasiado e que tenho sete filhos. Mas isto, além de grosseira inverdade, é uma infâmia. Eu tenho é dezoito filhos”....  
            Anedota irreverente ou fato verídico, o homem é sempre o mesmo. Anseia pela perpetuação do seu ego através da descendência, como é levado a da às suas glândulas endócrinas, o destino que elas têm. Hoje, quando me aproximo de um sacerdote (embatinado ou desbatinado), sem querer, me confranjo em  beijar-lhe a mão ungida nos santos óleos, no dia memorável de sua ordenação, pois, uma dúvida terrível me atravessa o cérebro, como aziago relâmpago: Será este um sacerdote segundo o coração de Deus ou, desgraçadamente, um homem dominado pela ambição do dinheiro e escravo do sexo como o comum dos mortais? Sim, porque a avareza e o relaxamento dos costumes são suas grandes tentações. E o enfraquecimento da fé.
            A velhice torna o homem cético. E isto é um grande mal. Envelheci. Hoje – repito – chego a desejar que se permita aos padres e bispos católicos casarem-se, se assim desejarem. Com tal permissão havíamos de ver quantos padres e quantos bispos, por esses brasis e alhures, abraçariam o estado matrimonial. Chegariam à legião? Talvez chegassem à legião, embora a sabedoria popular diga que “casar é bom, não casar é melhor”. Que “mulher é charada eterna que ninguém decifrará. Nada há melhor que ela, mas, pior também não há.” (Quadrinha popular)  
Ninguém é obrigado a escolher melhor... Eu mesmo já me casei duas vezes e, se muito tenho sofrido, muito mais tenho feito sofrer.
Casem, minhas gentes, casem e verão. Talvez um dia “passe” o divórcio para os arrependidos. Isso de ser o divórcio contra a doutrina cristã, tanta outra coisa é contra a doutrina cristã...
Eu continuo anti-divorcista. Para mim ele seria dose cavalar, mesinha que levaria cedo ao túmulo. Se minha vida é ruim com ela, muito pior seria sem ela...
Continuo a favor da manutenção do celibato eclesiástico pelas altíssimas razões que o implantaram e ainda – observe-se – na foram removidas.
Para onde vamos? Não sei, ninguém sabe, quando num país, que se diz cristão, a homossexualidade tem a tutela da lei...Que será de nós? Com o que vem ocorrendo nos nossos arraiais, nhá muita gente abismada, mas certamente, ninguém mais abismado que Paulo VI. Muito mais do que se passa no Vietnam, deve afligi-lo o que se passa na Barca de Pedro. (Só se eu estiver redondamente enganado).
É chegada a hora de retirar a máscara do rosto de muitos que a usavam para “ganhar a vida”.
Ah! Velhice desabrida e cruel... Por que tanto me fazes sofrer?  


[1] Últimas Crônicas, 1970
[2] Calças largas, folgadas. (N do E)
[3] Vazio e sem forma. (N do E)

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Frades estrangeiros


Frades Estrangeiros[1]


No livro de Gilberto Freyre “A propósito de Frades” à pág. 32, lemos:
“-Não que os frades, em geral, e os franciscanos, em particular, que passam pela história brasileira nem sempre sem outro ruído que o das suas sandálias de bons religiosos ou o da sua voz de pregadores sacros, tenham sido todos uns santo-antônios-onde-vos-porei. De modo algum. Sabemos que sob nomes seráficos de homens aparentemente só de Deus, chamados da paz, dos Anjos, do Salvador, de Jesus, da Purificação, do Sacramento, de Santa Rosa, da própria Santíssima Trindade, agitaram-se políticos mias zelosos das liberdades do século que das verdades eternas; mais apegados a causas do momento que às de sempre; e que sob nome de servos de Maria, Santíssima, vibraram corações apaixonados, alguns deles por marias apenas de carne e virgens somente da terra. Foram esses frades mais do mundo que do claustro; ou mais dos reis que do Rei dos reis.”
Reivindicando para padres religiosos a boa fama a que fazem jus, nosso saudoso Dr. Carlos de Laet, a 22 de maio de 1903, no Círculo Católico do Rio de Janeiro, pronunciou bela conferência, que teve por tema “O frade estrangeiro”. Como soube ele defender esse amigo do Brasil, olhado de soslaio pelos republicanos positivistas dos primeiros dias do século vinte! Li mais de uma vez a conferência de Laet e não regateei aplausos. Ainda penso como ele. Não obstante, estou convencido de que hoje Laet escreveria semelhantes louvores, indistintamente, aos frades estrangeiros.
Franciscanos, jesuítas, beneditinos, capuchinhos e também os dominicanos, prestaram relevantíssimos serviços à Igreja e ao Brasil. Mas, hoje se vê tanta coisa pelo avesso, que muito a contragosto, chego a lembrar-me da época em que expulsamos franceses e holandeses de nossas terras com a intrusos nocivos, inimigos do Brasil colônia. Terão voltado àqueles dias de provação para que devamos, pelas armas pacíficas da diplomacia, defender-nos das investidas, já não de protestantes franceses e batavos, mas, para livrar-nos da ação nefasta de alguns que, tendo recebido os carismas do Espírito Santo, insurgem-se contra a nação que tão fidedignamente os acolheu para cumprimento de sua missão específica, - a de implantar o reino de Cristo nas almas – e se põem a filosofar credos políticos exóticos, insuflando-os aos moços de entusiasmo fácil, mas de inexperiência manifesta?
Não digo que esses religiosos não procurem disseminar a doutrina da sociologia cristã, baseados nos ensinamentos das encíclicas papais, interpretadas sabiamente, de Leão XIII, Pio XI, João XXIII ou Paulo VI. Antes, é bom e justo fazê-lo com afinco para implantação crescente dos ideais cristãos que, em resumo, consistem em que haja, dia a dia, pobres menos pobres e ricos menos ricos. Mas, não é compreensível que exorbitem de sua missão sacerdotal para imiscuírem-se, sistematicamente, em movimentos subterrâneos de caráter nitidamente político, como vem acontecendo ultimamente, segundo se lê nas folhas diárias, e se ouve nos noticiários radiofônicos.
Pobres conventos, desgraçados mosteiros, nefandos colégios onde não se encontre mais a disciplina religiosa, nem fé, nem caridade autenticas. Aí se encontra amiúde dolorosa carência do espírito monástico, que é o de obediência, crescente gosto de mundanismo. Parece até que o demônio – em que alguns já não acreditam – tomou conta deles para servir-se de pessoas a Deus consagradas, fazendo-as disseminadores ou mentores de doutrina não ortodoxa, e de sistemas excêntricos, que ao povo brasileiro repugnam abismo pectore. Antes, retornassem precipites à pátria, em paz e livres de vexames, para que os poderes constituídos (a quem todos devem respeito), não se vejam obrigados a adotar medidas violentas.
Aos “ultra-avançados” daqui e de todo o resto do Brasil – holandeses, franceses, alemães, americanos – aqui fica um pedido: deixem-nos em paz, pois, antes sós do que mal acompanhados. Nas suas terras de origem, também há muito o que fazer. Ah! Os apóstolos dos países altamente civilizados!... Vão recristianizar seus povos, que estão dominados por doutrinas heréticas, escravizados por estranhíssima moral. Nós brasileiros somos cristãos. Assistem-nos nada menos de duzentos e cinqüenta bispos e cinco cardeais que, se incendiados pelo fogo da caridade divina, bastariam para operar o milagre da cristianização ou recristianização de todos os brasileiros, auxiliados como sempre pelos sacerdotes indígenas, também pelos estrangeiros fiéis à ortodoxia, respeitadores da lei do país. E quantos leigos capazes, e de boa vontade, há por aí, aguardando que a hierarquia os chame para missões que lhes ficariam muito bem? Será que os bispos brasileiros não têm confiança nos seus leigos?... Sem chamá-los, como irão pregar e batizar? “Não mandava profetas... e eles corriam” dizia o Espírito Santo, pela boca de Isaías. Onde estão as dezenas de diáconos “restaurados”? Temos um catecismo que não é brasileiro, nem privativo de nenhum país, porque, simplesmente, um catecismo da doutrina cristã e católica, isto é, universal.
Estamos, assim, bem servidos. Temos a Providência que, dia e noite, vela por nós. Temos Mãe no céu, e Senhora Mãe e Advogada, Rainha e Protetora. Por que tanto temor? O próprio Núncio Apostólico, se se tornasse para nós persona non grata a nação, o povo brasileiro, o Governo civil e a hierarquia eclesiástica têm a competência para apontar-lhe o caminho de regresso à sua pátria, depois das necessárias démarches junto ao Vaticano. Sim, porque padres indisciplinados, suspeitos e ordinários já não são raros entre nós. Dispensamos estrangeiros que forem desse jaez, os que, simultaneamente, vêm renegando sua religião e traindo a pátria adotiva. Para eles não há outro destino senão a expulsão como indesejáveis, após honestas e indispensáveis sindicâncias.
As imunidades só protegem os homens quando dentro de seus direitos, condicionados aos cumprimentos dos deveres que a lei impõe. Os que exorbitam de suas atribuições, revertendo os bons costumes e as leis, são tão passíveis de pena temporal como os demais transgressores, na medida da justiça, da caridade, está claro. Para os brasileiros há outras medidas drásticas. Oxalá não se veja o Governo na amarga circunstância de precisar adotá-las com freqüência. Poupem a Igreja constrangimento e ao Governo do Brasil esse vexame extraordinário


Agosto de 1969


[1] Últimas Crônicas, 1970

quarta-feira, 18 de julho de 2012

Ninho antigo



Ninho antigo[1]

Hoje, 25/9/66, fui até o mosteiro beneditino de Olinda a convite de Dom Gerardo Klages chegando às 9:30 hs., enquanto os sinos “Bento”, “Gerardo” e “Pedro”, tão meus conhecidos, bimbalhavam festivamente, convocando os fiéis para a missa das dez horas, a que assisti emocionado. Precedeu-a a “Tertia”, hora canónica, cantada, em coro, como somente os monges sabem cantar.
A missa foi solene, concelebrada por cinco sacerdotes que recitavam ou cantavam, simultaneamente, as orações, revestidos de longas casulas góticas, como hoje ordinariamente usam, enquanto a comunidade, em suas ricas estalas, assistia às cerimônias, envergando cogulas brancas sobre hábitos brancos.
Além de grande parte dessa missa ser rezada em língua vernácula, (também o Credo, o Prefácio, o Pater Noster e o Libera nos, quáesumus), chamou-me a atenção o Canon cantado pelos cinco concelebrantes, ao invés de recitado, submissa você, com era de praxe secular. Cantadas pausadamente, também foram as palavras da Consagração, o que me deixou admirado. Nunca eu ouvira coisa igual. É verdade que já assistira a outras missas concelebradas. Em Natal, no Palácio dos Esportes “Djalma Maranhão!, vi vinte e cinco bispos, piedosamente , concelebrando com a participação do sr. Núncio Apostólico e de Dom Antônio Zamora, enviado especial do santo Padre, mas nem por isso, voltei para casa tão maravilhado, como hoje, do mosteiro de São Bento. A liturgia beneditina é muito rica em beleza e fama.
Da mesma hóstia, que tinha dimensões de um prato de sobremesa e do mesmo cálice consagrado partilharam os cinco concelebrantes.
Faltam-me palavras para traduzir as emoções que o ambiente monástico e as cerimônias litúrgicas suscitam em mim. Após a missa, e a instâncias de Dom Prior, que fazia as honras da casa, participei do almoço da comunidade. Além das três dezenas de monges, noviços e postulantes, dez leigos – eu e nove jovens - nos assentamos às mesas, compartilhando de um almoço sadio, excelente. Todos os comensais guardavam silêncio, como é costume em mosteiros e conventos. Lia um monge trecho de certo livro de cujo autor o nome não guardei, mas, cuja doutrina social observei que era moderna.
Cantada em vernáculo a oração de agradecimento, como fora a que precedera o ágape, todos se retiraram. Passei a conversar com Dom Gregório e outros monges, entre os quais, Dom Gabriel Beltrão, velho amigo de 1918, num “hall” contíguo ao refeitório. Aqueles foram momentos de euforia para mim. Nem era para menos. Reviver tempos idos, vividos há meio século! Recordamos, então, a Dom Pedro Roeser e Dom Gregório Saupp, abade e prior respectivamente, àquele tempo distante. Como céleres fugiram os anos.
Daí, segui com Dom Gregório Klages, numa peregrinação de saudade, revendo sala por sala a começar pela sacristia, onde há enormes cômodas de jacarandá, ricas alfaias e retábulos do mais fino lavor em estilo barroco. Também fomos às galerias do claustro, em visita aos mortos queridos que lá dormem o sono da paz – Pax Christi – aguardando a parúsia sob lápides singelas: Dom Bonifácio Jansen, abade; Dom Gregório Saupp. Dom Vicente Blied, Dom Anselmo Fuchs, Dom Hidelbrando, Ir. Alexandre, Ir. Bartolomeu, velhos conhecidos meus, e outros.
Sabendo que Dom Agostinho Ikas, meu primeiro professor de latim, se achava doente, solicitei a devida licença para vê-lo. Levou-me até lá Dom Prior. Encontrei o  enfermo dando umas voltas no quarto, pois, sentindo-se melhor, precisava movimentar-se. O estado de saúde inspira sérios cuidados, mas, seu espírito é indomável. Não me reconheceu Dom Agostinho, mas, conversamos sobre o passado longa meia hora.
Voltamos, em seguida, ao claustro onde assentados num banco, me entreguei à leitura de alguns poucos capítulos de LUME DE PALHAS que estou ultimando, na esperança de publicá-lo. Essa leitura para Dom Gregório terminei-a no locutório do Mosteiro, onde ficamos mais à vontade.
Que alma grande Dom Gregório! Que paciência, que solicitude, que simpatia. Deixei em suas mãos FOME EXECRÁVEL, que aguarda o prelo, há muito t empo, pedindo-lhe que mandasse fazer uma censura extra-oficial, por algum monge. Outros opúsculos meus – O FACHO, EM PROL DA IGREJA, VELA DE SEBO, O LIVRO PROIBIDO, A SOMBRA E OUTROS, deixei-os para serem encadernados. Disseram-me o Prior que um noviço faz esse trabalho com muito bom gosto.
Despedi-me, então agradecendo as muitas atenções a mim dispensadas. Poderia, no comenos, ter dito a Dom Gregório, meu anfitrião, como Pedro, no altar do tabor, disse a Jesus que se transfigurara ante seus olhos deslumbrados: “- É bom ficarmos aqui, Senhor!”
Retirei-me com vivo propósito de voltar àquele reduto de estudo, oração, paz e trabalho, tão cedo quanto possível. Será para mim novo, e grande prazer.
Muito obrigado, Dom Prior.


[1] Publicado em Lume de Palha e Áscuas, 1969

domingo, 8 de julho de 2012

Frustrações



Frustrações[1]


Todos temos, desde a infância, inclinações e pendores, aspirações e sonhos que indicam vocação provável. Provável, não certa. Os espíritos privilegiados, apesar da pouca idade, têm ideais profundos, largos, fortes, consoantes com a grandeza da sua capacidade e destinação. Os que nasceram, porém, para humildes destinos alimentam aspirações modestas, sonhos acanhados.
            Não fugindo à regra, também tive aspirações e anseios delimitados pela pequenez da minha personalidade. Aos dez anos, desejando o sacerdócio, - veleidade de criança? Influência de pessoas da família? – ingressei no mosteiro beneditino de Olinda, sob os cuidados de dom Pedro Roeser e de Dom Gregório Saupp, respectivamente, abade e prior da comunidade. Desfeitas as possibilidades de continuar na escola de oblatos, em face dos acontecimentos finais da primeira grande guerra, passava-me, em princípios de 1919, para a Escola Agrícola São Sebastião, em Jaboatão, àquele tempo, dirigida pelo Vicente Priante, ao depois, bispo de Corumbá, e por outros salesianos. Ainda desta feita invalidaram-se-me as tentativas para alcançar o sacerdócio religioso, aliás, por tola desinteligência surgida com uma carta de minha mãe ao Padre Diretor. Imediatamente deixei a Escola Agrícola “a fim de que não saísse mais tarde com a consciência perturbada”, como me aconselhou o próprio Pe. Priante.
            Insistindo contra a correnteza do destino, em março de 1922, levado pela mão bondosa de Dom Antônio dos Santos Cabral, removido de Natal para Belo Horizonte, vi-me seminarista da arquidiocese de S. Paulo, entregue aos zelos dos cônegos regulares Premonstratenses, no seminário menor de Pirapora, junto ao Senhor Bom Jesus, sete léguas de distância da Capital paulopolitana. Ali acalentei as modestíssimas aspirações da minha juventude: primeira, ser congregado mariano; e o fui com grande gáudio, ainda que indigno. A segunda; ser sacristão do seminário. Teria algumas pequenas regalias, como: levantar às 4:30, (meia hora antes da comunidade), - sempre gostei de ver nascer o dia; - lidar com as alfaias, vasos sagrados e paramentos, bebericar resto de vinho das galhetas... Esse desejo dilui-se de chofre com a designação do meu colega de turma, Mário Viana, enquanto eu era nomeado fiscal dos menores, cargo de muita confiança. E também fui chantre, dada a suficiência da minha voz e meu grande amor pelo canto gregoriano.
            Já no Seminário Provincial de São Paulo, sabiamente dirigido por Padre Alberto Teixeira Pequeno, e por outros professores, padres seculares, durante o curso trienal de filosofia, aspirei com ardor dirigir a Schola Cantorum do seminário. Aqui é bem evocar o nome do nosso velho Maestro Fúrio Franceschini, uma das grandes culturas musicais da época, Malograda quimera... Antes de terminar o ano de 1928, com grossas lágrimas nos olhos, deixava de vez a batina e com ela os sonhos dez anos vividos na persecução do sacerdócio, para o que me não destinara Deus. Ainda desta última vez, fi-lo com iniciativa alheia, ou seja, a conselho do padre espiritual do seminário, Paulo de Tarso Campos, hoje venerando arcebispo resignatário de Campinas. Ele achava que com meu gênio impulsivo, invés de aproximar de mim os meus futuros paroquianos, afastá-los-ia. Assim, seria contraproducente meu apostolado... Certo de que “quem obedece não erra”, vinte dias depois de ouvir tão grave conselho, com a anuência e plena aprovação do Reitor, Pe. Pequeno, deixei o seminário de S. Paulo.
            Desejos, aspirações, esperanças carinhosamente alimentadas de um dia vir a ser sacerdote, tiveram pronto fim, diante da nova orientação que tive que dar à minha vida. Então, enveredei por outros caminhos muito diversos ao longo dos quais as garras do destino me vêm arrastando até hoje, e que palmilho de bom ou mau grado, inter angustias...
            Entrado na velhice, chego a ter a impressão de ainda ser aquele seminarista pobre de antanho, rude e acanhado, tantos e tão profundos foram os sulcos abertos n’alma, ao tempo feliz do seminário, que nunca me foi possível desmanchá-los inteiramente.
            Ninguém sabe para o que nasceu. Muitos ideais da mocidade jamais se concretizam. Poucas vezes realiza-se o homem. Outras muitas não o consegue. E torna-se o homenzinho um frustrado... Ah! As minhas frustrações...
            Dolorosa seqüência de ilusões perdidas, revividas em vaporosas cismas que diante dos meus olhos empanados passam vagarosamente em procissão dolente... Reminiscências que embalsamam as chagas da velhice. Apiede-se Deus dos que tomaram caminho errado e terão que palmilhá-lo... Até o fim!
Maio de 1969


[1] Últimas Crônicas, 1970

domingo, 1 de julho de 2012

De camarote


De camarote[1]

             Fato inconteste é esse; os brasileiros estão divididos. E quanto maus isto é certo, tanto mais digno de lástima. A imprensa escrita, falada, radiofonizada, mesmo televisionada, revela profundas dissensões existentes e, é de se supor, também ódio.
            Já está nos causando mal-estar, se não fosse asco, a simples leitura das folhas diárias e revistas, onde, repiso, se estereotipam tantas desavenças, tantas incompreensões e até arengas ridículas sobre assuntos graves. Ódios que não são mais surdos nem mudos. E isto na política, entre aficionados e profissionais; e isto no seio da religião, entre ilustres dignitários e prelados que, sentindo-se donos da verdade, não se cansaram ainda de dar este mau exemplo aos seus diocesanos, e a todos enfim. Já não aludo a algumas comunidades religiosas que se tornaram em antros de insubordinação e, em escândalo, alguns colégios e cenóbios. Misérias, ciumadas, e pecados feios et reliqua, sempre houve no mundo, mas, ao menos havia os muros altos dos mosteiros, quase sempre engastados em lugares de acesso difícil, afastados dos burgos, alem do que, a máscara do silêncio ou um disfarce qualquer amenizava para o grande público as vexatórias situações ocasionais, Os religiosos, sob o pretexto de apostolado, são os mais andejos e extrovertidos, enquanto dos rostos as máscaras vão caindo com a freqüência das batidas do coração humano, e muitos se entregam a ações que ferem o decoro social, escandalizando gregos e troianos. A linguagem por alguns usada já não é de doutrinação e de catequese. É simplesmente desafio e ameaça. E todos vivemos assim assustados, aguardando a todo momento o “estouro da boiada”...        
Para certos profetas hodiernos, toda riqueza é injusta. Todo pobre, sem distinção, é Cristo vivo; todo desajustado e marginalizado, um santo em potencial. Toda autoridade, opressora e abusiva. Revivências da idade patrística, quando Cristo ainda não ingressara nas diversas camadas sociais, mas hoje ninguém ignora Cristo. 
Quem está gozando essa lamentável balbúrdia são os nossos “queridos irmãos separados” ou como quer que os chame o CELAM[2].
De camarote, eles assistem as águas de um novo mar vermelho se abrindo, dividindo-se para tragar uma das facções em que se dividem os católicos romanos. Eles vêem os campos da IGREJA MÃE comburidos pelo sol das dissensões e de estapafúrdias inovações, enquanto chuvas generosas regam, incrementando suas atividades apostólicas, como se fora ”tanto pior, melhor”. Por tudo isto e pela falta de disciplina e de fé de muitos – fiéis e alguns pastores – é que um senhor ianque há poucos dias, no Recife, teve a petulância de vaticinar que em breve seria o Brasil o maior baluarte protestante da terra, paraíso das quinhentas seitas que congregam os muitos milhões de nossos “irmãos separados” hoje “ecumenicamente” unidos a nós, por vínculos de amor e de paz. Aliás, ele, o bom pastor pentecostal, se insurgia na entrevista contra o ecumenismo romano, tal como a todos é proposto. O certo é que enquanto, abrindo os braços, fazemos-lhes concessões e mais concessões, mais perdemos terreno e nos protestantizamos.  Daí as conclusões pressurosas do pastor, Protestantes de todos os matizes, mações de todos os graus, espíritas de todos os planos; hora é de congraçamento, de ecumenismo. É momento do abraço fraternal.
Não que eu não deseje ver aproximar-se o dia venturoso da união de todos os cristãos debaixo do cajado de um só Pastor – o Bom Pastor! Nem que em dia algum haja me olvidado das palavras do cântico de Páscoa: Onde a caridade e o amor, aí Cristo!  Não menos do versículo que se segue: “Ne nos mente dividamus, caveamus[3]. Não. Nada disto.
Vemos com a clareza meridiana dos fatos, que nesta altura dos acontecimentos, as divisões são tantas, tão graves e tão profundas, entre católicos e católicos que até o conteúdo daquela mensagem perde o sentido das coisas reais. Saíram do estreito ambiente da “mente” pás as folhas dos diários do mundo, e católicos. Será que ninguém viu o trecho da epístola paulina, onde se lê: “não quero contender em palavras porque para nada isto serve, senão para aborrecer os que ouvem?” É este aborrecimento, este insofreável enjôo, este asco que muitos estão a sentir, vendo padres se digladiando pela imprensa com outros padres, bispos e arcebispos contra opiniões, pareceres e ação pastoral de outros arcebispos e bispos, já não no campo fechado da teologia dogmática, pastoral ou do direito canônico, mas no da sociologia e economia política, matérias em que todos andamos às apalpeladas, ainda hoje...
Quantos, dizendo buscar o bem alheio, procuram o seu próprio? Há tanta vaidade em tudo... Fale o Eclesiastes: “Tudo é vaidade”. Fale o sábio: “Todo homem é mendaz”
Então? Trabalhar em silêncio por mais uma justa distribuição das riquezas é muito mais consentâneo com o bom senso! A salvação do mundo está no Trabalho, Estudo e Oração. Quem mais se exterioriza menos fica senhor de si. Para que tantas declarações à imprensa? Para que tantas viagens dentro e fora (já não digo das circunscrições diocesanas), do país, senão dos quatro cantos do mundo? Não bastavam as viagens ao redor do quarto de dormir? Adverte o autor da Imitação de Cristo[4] que de suas andanças “sempre volto menos homem”. E lá o anexim: - “Quem anda muito pouco se santifica”.
Sem faltar com o devido respeito a tão veneráveis autoridades eclesiásticas, regularmente constituídas, nos perguntamos: Onde está o Sr. Núncio Apostólico que não faz encerrar estas intermináveis questões? Falta-lhe conhecimento das tristes ocorrências? Falta-lhe autoridade moral para dizer como José do Egito: “Ne irascamini in via?”[5] Não arenguem...
Paternalmente, os pais impõem silêncio aos filhos que gostam de altercações e de briguinhas ridículas. Ou será “que é “cousa superada” a verdade do aforismo: “ – Roma falou, acabou-se a questão?”
Eis o que toda a população brasileira aguarda com ansiedade: o fim dessas contendas. A volta da disciplina que há muito vem desaparecendo do mundo cristão para gáudio dos inimigos da Igreja em crise, e vexame dos que a amam agora mais do que nunca.
[1] Últimas Crônicas, 1970
[2] Conselho Episcopal Latino Americano (Nota de Editor)
[3] Verso do Hino Ubi Caritas: Não vamos ser divididos em  mente”. (Nota de Editor)
[4] Obra atribuída ao padre alemão Tomás de Kempis, publicada no século XV. (Nota de Editor)
[5] Gênesis 45,24:”Não contendais pelo caminho” (Nota de Editor)

quarta-feira, 27 de junho de 2012

Carta ao Arcebispo


A referida igreja, atualmente.

Carta ao Arcebispo[1]

(O destinatário deu o “calado” como resposta. Respeito a omissão e a fuga do diálogo. Poupo-me trabalho sem ganho. Tendo prestado por vezes meus serviços, nunca recebi um convite para um café no seminário... Ah! os nove leprosos do Evangelho!)

            Permita-me sair dos arraiais onde vivo na sombra do mais profundo anonimato, para sugerir uma medida que a mim – pobre de mim! – me parece convinhável. É ao mesmo tempo um pedido: feche a igreja de S. João Batista da Lagoa Seca. Interessante aquela matriz porque é situada no bairro de minha predileção, onde possuo ainda casas e um bom terreno, tendo lá vivido vários anos. Lá moram dois filhos meus ainda imbuídos do espírito religioso que lhes incuti na primeira infância: Pedro Marcelino e Maria José. Esta casada com Nilton Cunha, gerente da agência do Banco da Lavoura daí. Ela morou vários anos em Garanhuns e foi freqüentadora assídua do Santuário de N. Senhora do Perpétuo Socorro, sob a direção dos Padres Redentoristas, que desenvolvem lá apostolado mariano.
            Pois, bem. Ela e Pedro Marcelino, hoje freqüentam a igreja matriz da Lagoa Seca, a fim de ouvirem missa dominical. Contaram-me os assuntos ventilados em homilias do Padre Pio, o qual expõe doutrina com ranço herético, difundida talvez, na forma e no fundo, pelo famoso Catecismo Holandês. Esse pobre “pastor” nada entende das veneráveis tradições portuguesas e brasileiras e nenhum tato revela no manejo com a “gentinha” da Lagoa Seca, a quem escandaliza com a sua doutrinação.
            Certa vez, na sala da agência dos correios e telégrafos da Cidade Alta, falando sobre a encíclica do controle da natalidade, ele disse: “o Papa faz as besteiras dele, e depois...” Minha irmã, Dirce Ribeiro Dantas, ouviu o comentário desrespeitoso e não gostou. Eu mesmo assisti à missa das 6:00 horas, domingo, dia 27 de julho, e ouvi assertivas desse jaez: Que não havia pecado original... Que não existem demônios, nem anjos da guarda... Crer nisso é infantilidade.
            Afirma que pedir a benção aos pais é tolice mui brasileira. Ele mesmo nunca tomou benção a seus pais. Já faz em sua paróquia a tal confissão comunitária, como se, para o perdão dos pecados veniais, não houvesse os sacramentais... Para pecados graves (quem os não tem numerosos?) serve uma confissão comunitária, sem arrependimento nem propósito? Que ainda este ano vai haver radical modificação na liturgia da missa, inclusive no que diz respeito às espécies sacramentais. (A hóstia será pão comum?) Certamente qualquer forma que tenha o pão ázimo e, sendo puro o vinho, não vejo como não serem dignos de consagrados. Mas, suas doutrinações, mesmo em outras oportunidades, não hão de fugir ao estapafúrdio. 
            Antes da benção litúrgica do fim do culto, dirigiu-se ao público para esclarecimentos. Disse, então, que o padre Fulano deixou o sacerdócio e casou com mulher casada e vive em tal lugar. Que padre Beltrano não deixou o sacerdócio, mas que está em tratamento de saúde na Holanda. Que o irmão leigo, Sancho, casou-se também com mulher casada e vive em Belém do Pará... (Todos serviram na infeliz Lagoa Seca.) Ainda afirmou que, semanalmente, 600 padres abandonam o sacerdócio para viverem civilmente. (Não disse, porém, quando ele mesmo deixará o ministério para casar com uma mulherzinha qualquer).
            Dom Nivaldo, francamente, em que pode tudo isto edificar a “gentinha” da Lagoa Seca? Não lhe parece que alguns padres estão se protestantizando, ou entraram em dolorosíssima crise de fé?
            Vaticinou que dentro de seis anos (o prazo é dele) nenhum padre viverá mais do altar. (Não vejo nada de indignidade no trabalho mesmo manual). Mas, reconheço que, rezando ajoelhado diante do Santíssimo, seria melhor. Que uns serão bancários, outros funcionários públicos, (menos os estrangeiros, porque a lei não lhes faculta), outros, professores particulares, muitos serão operários, comparecendo apenas aos sábados e domingos para os atos do culto. Disse que a única solução era o fechamento de todos os seminários, também os religiosos, donde se conclui que os raros futuros levitas doravante serão sistematicamente “formados” no olho da rua, em íntimo contato com desajustados e marginalizados, o que redundaria em profundo conhecimento do povo e das suas necessidades...
            Ora, se no passado, era deficiente a instrução e educação dos seminaristas, como será de futuro? Mas, convenhamos, a face da Igreja, nestes dias, deve tomar as feições da face mortuária do Salvador. Nem sou capaz de negar a minha colaboração neste SACRILÉGIO; Gravíssimos são os meus pecados.
            Voltando ao ponto de partida, melhor é ter uma paróquia vaga do que preenchida por um “Padre Pio” qualquer. Se os jornais divulgarem hoje que Paulo VI está chorando lágrimas de sangue, de pronto eu acreditaria. Não sou filho de profeta. Menos ainda o sou eu mesmo, mas afirmo, pela experiência que tenho, quanto mais concessões se fazem à besta, que se encastela no homem, (aqui seria no padre), piores eles ficam e piores vão ficando as cousas. Logo mais serão eles os que hão de exigir a implantação do divórcio?...
            Choremos com Paulo VI...
Jamais fui ou serei contra providências papais... Mas, que hoje existem alguns bispos romanos e muitos padres católicos tão protestantes como Lutero ou Calvino, isto cá me parecer uma verdade inconcussa, Como, frequentemente, o homem “tresvaria”, pode até ser que eu esteja mentindo ou laborando em erro, ou não haja apanhado bem o pensamento do "pastor" da Lagoa Seca. Assim, acredito que o Sr. Arcebispo do Natal faria bem em mandar proceder as sindicâncias, junto àquele vigário e seus auxiliares, a fim de apurar toda a verdade, e poder tomar a prudente medida que se impõe. Se for o caso do Padre Pio estar acobertado de razões, pediria eu a caridade de uma pronta resposta com a súmula das "VERDADES ATUAIS" e a relação das "VELHAS ABUSÕES" do tempo de Pe. João Maria, Pe. Agnelo Fernandes, Cgo. Luiz Monte e Mons. Joaquim Honório.

Antecipadamente, agradece Honório Ribeiro Dantas.  ser que eu esteja mentindo ou laborando em erro, ou nte, o homem "sidades...
mim - pobre e para um caf


[1] Últimas Crônicas, 1970

segunda-feira, 25 de junho de 2012

Os olhos vêem as aparências - II


Este texto é continuação do tópico publicado abaixo (Os olhos vêem as aparências - I) cuja íntegra foi publicada no livro Vela de Sebo no ano de 1965.

Os olhos vêem as aparências - II  [1]

Sou levado a pensar que as pompas eclesiásticas foram o principal responsável pelo inconteste prestígio da Igreja na Idade Média, quando Papas manejavam imperadores como a vassalos seus, doando terras descobertas, incomensuradas ainda, a reis católicos, e lançando excomunhões àqueles que lhe negavam obediência e apoio. Mas, os excessos de luxo e vaidade, favorecendo e incrementando os maus costumes, próprios de uma época leviana, e mesmo dissoluta, promoveram a ambiência e suscitaram “reformadores” para a grande heresia do século XVI.
Fuja-se dos excessos. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Mas, é certo, “quem com farelo se mistura, porcos o comem”. Fugir da praxe, tornar-se excêntrico, seria modéstia?  Pode ser que seja; também pode ser que nem seja. Os reformadores e inovadores devem ser geniais. Caso em contrário, cairão no ridículo.
Senão vejamos: despoje-se o Papa de todo aquele aparato quem que vive; renuncie aos faustos do seu reinado terreno; extinga sua corte e a Guarda Suíça; experimente banir o protocolo; proscreva as trombetas de prata e a cadeira gestatória; ande mesmo a pé, na poeira das ruas, desacompanhado de dignitários, assessores e fâmulos, como se fosse o mais humilde dos mortais; traga em cima de si uma só túnica sovada, desprovido de bolsa e de   alforje, e verá quem lhe vai ouvir a doutrina cristã que escorre de sua boca, quem lhe há de obedecer as ordens, conselhos e insinuações. Aonde irá parar o seu prestígio pessoal, a aristocracia da Igreja, sua hierarquia. Tal não acontecerá se a bem da pobreza desfizer-se de “algumas coisas”, como Paulo VI que se desfez da riquíssima tiara que lhe ofertara, para a coroação, a gente milanesa, dando, em novembro de 1965, humana destinação àquele adorno pontifício. Mas, havia à sua disposição outras tiaras.
De tudo, de todas as formalidades e prerrogativas não há de Ele despojar-se, porque não é conveniente ao cabal desempenho de sua missão humano-pastoral...
O povo, a amassa, é muito sensível ao brilho faustoso das altas aristocracias. É um complexo, uma psicose humana. Como a boa esposa que se sacrifica – até na mesa – em benefício do esposo, dos filhos; assim, a massa, sem encarar as suas necessidades, é desprendida, dadivosa, contanto que seu guia, seu “chefe” brilhe e se firme. É o que se observa em momentos de exaltação democrática.
Viva o Papa!  Viva o Rei!  Viva o excelentíssimo Presidente da República! Viva o Governador do Estado! São os gritos que atordoam, saídos do fundo do coração. Ah! Como é inatingível a psicologia das multidões, quando sacudidas pelo verbo inflamado de hábil demagogo... O fanatismo, vez por outra, se instala no seio do povo inculto, tendo por objeto não somente o homem providencial, o taumaturgo, como até ladinos embusteiros. Porque suscitaram fascínio. Souberam suscitá-los.
Deixem-se aos frades mendicantes os excessos de desprendimentos. E, enquanto possível, conservem-se as tradições venerandas e os costumes seculares que os Papas santos e sábios, que os Bispos clarividentes e argutos, desconhecedores das teses, das anti-teses, dos corolários da moderna psicologia experimental e da sociologia, hoje tão celebradas, abraçaram empiricamente, sem escrúpulos, durante milênio e meio, sem propenderem para o endeusamento do homem, nem descambarem para a popularidade barata, para o aviltamento. Não censuremos o procedimento da Igreja dos passados séculos, como insipiente, inócuo e escandaloso, contrário aos princípios cristãos e à mesma Igreja. Deixemos isso para seus inimigos rancorosos. Que não são poucos.
A Idade Média tinha suas exigências, como a atualidade, o seu aggiornamento. Tenha-se em mira das nossas atenções as medidas que promanarem do Concílio Ecumênico Vaticano II, prestes a encerrar-se; desde a mudança da língua litúrgica (latina) para o idioma vernáculo de cada povo, até a modificação ou supressão das vestes talares e dos indumentos episcopais e levíticos, se a tanto chegarem as resoluções dos Excelentíssimos Padres Conciliares. Mas, seja-nos bem presente que admitir, facultar, permitir, tolerar e mesmo aconselhar não são sinônimos de ordenar e prescrever. Somente estes tem força coercitiva, os demais são fraquinhos ad libitum. Pois ninguém está obrigado a fazer uso de um privilégio, de prerrogativas.
Assim, (em hipótese), a Igreja poderá permitir que padres venham a ser dispensados do celibato, mas não creio que chegue a ordená-los a que se casem. A não ser a padres que já levem vida conjugal ou escandalosa; e isto, no sentido de reconduzi-los, caridosamente, à vida da graça. Só a polícia tem a presunção de “casar a força” namorados incontinentes; o que, além da contraproducente em seus efeitos familiares e sociais, esse “casamento a força” é simples formalidade legal, sem caráter religioso, sacramental. Por isso, quantos ao saírem da “chefatura” se vão desavindos e separados para toda a vida?
- E a maior vítima quem é?
- O filho nascituro.
Sempre andaremos em caminho certo, quando, guiados pelo bom senso, palmilharmos a média-vida. Bom senso e equilíbrio estável é o que começa a faltar nos dias angustiados em que vivemos; inquietos, uns; apavorados, outros, com os terríveis espectros da fome, do câncer e da destruição atômica, e  assim, vamos sendo esmagados pelo compressor do século XX.
E a vida continua... 

[1] Publicado em Vela de Sebo, 1965