domingo, 18 de novembro de 2012

Coisas de Velho


Coisas de Velho[1]

E ser-se novo é ter-se o paraíso.
É ter-se a estrada larga, ao sol, florida,
aonde tudo é luz e graça e riso.

Florbela Espanca

Por que os entrados na velhice nunca procuram abordar temas do futuro, antes, dão-se ao vezo de ventilar sempre coisas do passado e, preferentemente, do passado longínquo? Naturalmente, é que o sexagenário, mais ainda o setuagenário e o octogenário não esperam viver mais. Esperam, isto sim, esperam pela morte, já que a verdade é fatal: “quem de moço não morre, de velho não escapa”.
            E começam a viver os pródromos da eternidade... Como raramente, a consciência têm-na tranquila, fogem de pensar nos dias porvindouros. Assim, lançam suas saudades, de melhoras para seu reumatismo, sem cuidar de que estes são males incuráveis. Começam, pois, a escrever “memórias”...
Assim também o sinto, já que entrei no rol dos que estão “dentro dos 60”. Por isso mesmo, temas da minha mocidade me empolgam e inibem de dar-me às coisas que virão ou não virão nunca para mim.
Um amigo (sincero? – não sei) com dureza, observou-me:
- Por que você está sempre a ventilar coisas da religião? Não sabe discorrer sobre outro assunto?
- Cada um fala do que conhece e ama, da abundância do coração, repliquei. E minha infância se confunde, dentro da minha memória, com a religião da qual sonhei um dia ser ministro.
Ele, também, da minha mesma idade, vive a reviver episódios da sua mocidade... E nem dá por isto.
Aqui faço lembrada a palavra do Pe. Daniel Lima, citada por mim, a páginas tantas de Vela de Sebo: -“Ter sido é uma forma de ser ainda. O passado não tem sentido como tempo morto. Há em mim, vivo e presente, tudo o que fui e o vivi, tudo o que amei e odiei, desde que nasci”.
A infância e a mocidade são a nossa ilusão, a realidade, que os fugiu tão cedo, e a substância imponderável da nossa própria existência. O velho vive do passado como a criança vive do futuro, que presume ser de ouro e luz, o que nunca acontece. Tudo isto é tão natural que não merece ser observado. São as compensações da vida.
Então, o que entrou na velhice começa a falar como velho, criando memórias e vivendo lembranças com que pensa refazer a sua gasta e dilapidada existência e – o que é muito pior – compenetra-se, fatuamente, de que pode servir de modelo a seus filhos e a possíveis leitores seus. Vaidade? Orgulho ou coisa pior? Nada pior que o orgulho. (A avareza é mais desumana). É quando se torna “moralista impenitente”, malgrado sua ética seja de palavras que o vento leva mais depressa do que enxuga uma lágrima de criança.
            Um homem cuja cova já começam a cavar, embora tenha alguns anos ainda para fazer as asneiras próprias da idade senil, é  um homem que não suporta encarar o futuro. Sabe que o seu porvir é aquela cova rasa. Começa, então, a lançar olhares retrospectivos, teimosos, obstinados. Sua motivação é a mocidade que morreu.
Somente os poetas (e não todos) se dão ao luxo de pensar em coisas aziagas, merencórias e tétricas. O comum dos homens encanecidos ou depilados, esses querem voltar à álacre mocidade, num esforço infausto e improfícuo, mas, persistente. Nisto, o seu valor único. É a volúpia das coisas impossíveis...
Ah, Fausto... Ah, Fausto! Mefistófeles, no romance de Goethe, prometeu ao “homem-símbolo” dos que se tornaram impotentes, a volta, o tão suspirado regresso aos hábitos da mocidade. Ilusão!...
Os homens vividos, os gastos de todas as idades, sempre nutriram esse sonho tão irrealizável como a mais linda das quimeras. O moto-contínuo e a alquimia medieval simbolizam bem as ilusões do homem. E continuaram os que hão de vir a nutrir o sonho até que o mesmo se transmude em horrível pesadelo: a morte!
Não são, todavia, apenas os velhos entrados em decrepitude que buscam a fuga de si mesmos pelo derivativo do sonho. A juventude, também ela é afeita à ilusão. E, por isso, sonha com o futuro que lhe sabe a flor e o mel. Quer a mocidade chegar à plenitude dos anos para se tornar detentora do ouro e da glória, do mando e da felicidade. É a vida, que nisso tudo se resume: amor, pão e liberdade. Por isso sonham. Mas todos sonhamos porque sabemos todos que, sem a ilusão e as mentiras inocentes que nos pregamos a nós mesmos, não seria a vida coisa possível de viver.
Houve alguém, por ventura que, rindo e cantando buscasse a morte? Ao invés, cheios de horror, todos fogem do gélido amplexo da terrível parca. Contam, todavia, os agiólogos que os cristãos do Império Romano enfrentavam de ânimo sereno, por Amor de Cristo, leões hienas e panteras. E cantavam:
“-Podes, ó Cesar, arrancar-nos a pele do corpo, rasgar-nos as carnes, moer-nos; não conseguirás arrancar dos nossos corações a fé”.
Somente os idealistas, cheios de fé arrebatados da esperança, ensandecidos pela caridade, lograrão conformar-se com a morte. Nós outros morremos porque “quem não pode viver, morre”, explica o anexim. Aqui não há dilema. Há destinação.
Os suicidas buscam o descanso, o oblívio que não existe para quem se insurge contra a natureza. O aniquilamento a eternal inércia seria o império da injustiça. Aquele que tem direito à glória, não pode ser nivelado com quem mereceu a geena[2], pelo abuso da sua liberdade. E como abusamos dela...
A vida futura existe porque é anseio da alma, mas, não é repouso. Não é inatividade absoluta. Não há nirvana. A vida futura é atividade em plenitude, atividade sem esforço, mas atividade intensam eterna.
Não é de conceituação fácil a eternidade onde não haverá “potência”, mas somente “ato”. Êxtase sem fim. Todos em Deus!
Enquanto lá não chegarmos, sonhemos. É tão bom sonhar.


[1] Publicado em Lume de Palha e Áscuas, 1969
[2] N.do E. 1 Inferno, na religião hebraica. 2 Dor intensa; tortura.

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