quarta-feira, 27 de junho de 2012

Carta ao Arcebispo


A referida igreja, atualmente.

Carta ao Arcebispo[1]

(O destinatário deu o “calado” como resposta. Respeito a omissão e a fuga do diálogo. Poupo-me trabalho sem ganho. Tendo prestado por vezes meus serviços, nunca recebi um convite para um café no seminário... Ah! os nove leprosos do Evangelho!)

            Permita-me sair dos arraiais onde vivo na sombra do mais profundo anonimato, para sugerir uma medida que a mim – pobre de mim! – me parece convinhável. É ao mesmo tempo um pedido: feche a igreja de S. João Batista da Lagoa Seca. Interessante aquela matriz porque é situada no bairro de minha predileção, onde possuo ainda casas e um bom terreno, tendo lá vivido vários anos. Lá moram dois filhos meus ainda imbuídos do espírito religioso que lhes incuti na primeira infância: Pedro Marcelino e Maria José. Esta casada com Nilton Cunha, gerente da agência do Banco da Lavoura daí. Ela morou vários anos em Garanhuns e foi freqüentadora assídua do Santuário de N. Senhora do Perpétuo Socorro, sob a direção dos Padres Redentoristas, que desenvolvem lá apostolado mariano.
            Pois, bem. Ela e Pedro Marcelino, hoje freqüentam a igreja matriz da Lagoa Seca, a fim de ouvirem missa dominical. Contaram-me os assuntos ventilados em homilias do Padre Pio, o qual expõe doutrina com ranço herético, difundida talvez, na forma e no fundo, pelo famoso Catecismo Holandês. Esse pobre “pastor” nada entende das veneráveis tradições portuguesas e brasileiras e nenhum tato revela no manejo com a “gentinha” da Lagoa Seca, a quem escandaliza com a sua doutrinação.
            Certa vez, na sala da agência dos correios e telégrafos da Cidade Alta, falando sobre a encíclica do controle da natalidade, ele disse: “o Papa faz as besteiras dele, e depois...” Minha irmã, Dirce Ribeiro Dantas, ouviu o comentário desrespeitoso e não gostou. Eu mesmo assisti à missa das 6:00 horas, domingo, dia 27 de julho, e ouvi assertivas desse jaez: Que não havia pecado original... Que não existem demônios, nem anjos da guarda... Crer nisso é infantilidade.
            Afirma que pedir a benção aos pais é tolice mui brasileira. Ele mesmo nunca tomou benção a seus pais. Já faz em sua paróquia a tal confissão comunitária, como se, para o perdão dos pecados veniais, não houvesse os sacramentais... Para pecados graves (quem os não tem numerosos?) serve uma confissão comunitária, sem arrependimento nem propósito? Que ainda este ano vai haver radical modificação na liturgia da missa, inclusive no que diz respeito às espécies sacramentais. (A hóstia será pão comum?) Certamente qualquer forma que tenha o pão ázimo e, sendo puro o vinho, não vejo como não serem dignos de consagrados. Mas, suas doutrinações, mesmo em outras oportunidades, não hão de fugir ao estapafúrdio. 
            Antes da benção litúrgica do fim do culto, dirigiu-se ao público para esclarecimentos. Disse, então, que o padre Fulano deixou o sacerdócio e casou com mulher casada e vive em tal lugar. Que padre Beltrano não deixou o sacerdócio, mas que está em tratamento de saúde na Holanda. Que o irmão leigo, Sancho, casou-se também com mulher casada e vive em Belém do Pará... (Todos serviram na infeliz Lagoa Seca.) Ainda afirmou que, semanalmente, 600 padres abandonam o sacerdócio para viverem civilmente. (Não disse, porém, quando ele mesmo deixará o ministério para casar com uma mulherzinha qualquer).
            Dom Nivaldo, francamente, em que pode tudo isto edificar a “gentinha” da Lagoa Seca? Não lhe parece que alguns padres estão se protestantizando, ou entraram em dolorosíssima crise de fé?
            Vaticinou que dentro de seis anos (o prazo é dele) nenhum padre viverá mais do altar. (Não vejo nada de indignidade no trabalho mesmo manual). Mas, reconheço que, rezando ajoelhado diante do Santíssimo, seria melhor. Que uns serão bancários, outros funcionários públicos, (menos os estrangeiros, porque a lei não lhes faculta), outros, professores particulares, muitos serão operários, comparecendo apenas aos sábados e domingos para os atos do culto. Disse que a única solução era o fechamento de todos os seminários, também os religiosos, donde se conclui que os raros futuros levitas doravante serão sistematicamente “formados” no olho da rua, em íntimo contato com desajustados e marginalizados, o que redundaria em profundo conhecimento do povo e das suas necessidades...
            Ora, se no passado, era deficiente a instrução e educação dos seminaristas, como será de futuro? Mas, convenhamos, a face da Igreja, nestes dias, deve tomar as feições da face mortuária do Salvador. Nem sou capaz de negar a minha colaboração neste SACRILÉGIO; Gravíssimos são os meus pecados.
            Voltando ao ponto de partida, melhor é ter uma paróquia vaga do que preenchida por um “Padre Pio” qualquer. Se os jornais divulgarem hoje que Paulo VI está chorando lágrimas de sangue, de pronto eu acreditaria. Não sou filho de profeta. Menos ainda o sou eu mesmo, mas afirmo, pela experiência que tenho, quanto mais concessões se fazem à besta, que se encastela no homem, (aqui seria no padre), piores eles ficam e piores vão ficando as cousas. Logo mais serão eles os que hão de exigir a implantação do divórcio?...
            Choremos com Paulo VI...
Jamais fui ou serei contra providências papais... Mas, que hoje existem alguns bispos romanos e muitos padres católicos tão protestantes como Lutero ou Calvino, isto cá me parecer uma verdade inconcussa, Como, frequentemente, o homem “tresvaria”, pode até ser que eu esteja mentindo ou laborando em erro, ou não haja apanhado bem o pensamento do "pastor" da Lagoa Seca. Assim, acredito que o Sr. Arcebispo do Natal faria bem em mandar proceder as sindicâncias, junto àquele vigário e seus auxiliares, a fim de apurar toda a verdade, e poder tomar a prudente medida que se impõe. Se for o caso do Padre Pio estar acobertado de razões, pediria eu a caridade de uma pronta resposta com a súmula das "VERDADES ATUAIS" e a relação das "VELHAS ABUSÕES" do tempo de Pe. João Maria, Pe. Agnelo Fernandes, Cgo. Luiz Monte e Mons. Joaquim Honório.

Antecipadamente, agradece Honório Ribeiro Dantas.  ser que eu esteja mentindo ou laborando em erro, ou nte, o homem "sidades...
mim - pobre e para um caf


[1] Últimas Crônicas, 1970

segunda-feira, 25 de junho de 2012

Os olhos vêem as aparências - II


Este texto é continuação do tópico publicado abaixo (Os olhos vêem as aparências - I) cuja íntegra foi publicada no livro Vela de Sebo no ano de 1965.

Os olhos vêem as aparências - II  [1]

Sou levado a pensar que as pompas eclesiásticas foram o principal responsável pelo inconteste prestígio da Igreja na Idade Média, quando Papas manejavam imperadores como a vassalos seus, doando terras descobertas, incomensuradas ainda, a reis católicos, e lançando excomunhões àqueles que lhe negavam obediência e apoio. Mas, os excessos de luxo e vaidade, favorecendo e incrementando os maus costumes, próprios de uma época leviana, e mesmo dissoluta, promoveram a ambiência e suscitaram “reformadores” para a grande heresia do século XVI.
Fuja-se dos excessos. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Mas, é certo, “quem com farelo se mistura, porcos o comem”. Fugir da praxe, tornar-se excêntrico, seria modéstia?  Pode ser que seja; também pode ser que nem seja. Os reformadores e inovadores devem ser geniais. Caso em contrário, cairão no ridículo.
Senão vejamos: despoje-se o Papa de todo aquele aparato quem que vive; renuncie aos faustos do seu reinado terreno; extinga sua corte e a Guarda Suíça; experimente banir o protocolo; proscreva as trombetas de prata e a cadeira gestatória; ande mesmo a pé, na poeira das ruas, desacompanhado de dignitários, assessores e fâmulos, como se fosse o mais humilde dos mortais; traga em cima de si uma só túnica sovada, desprovido de bolsa e de   alforje, e verá quem lhe vai ouvir a doutrina cristã que escorre de sua boca, quem lhe há de obedecer as ordens, conselhos e insinuações. Aonde irá parar o seu prestígio pessoal, a aristocracia da Igreja, sua hierarquia. Tal não acontecerá se a bem da pobreza desfizer-se de “algumas coisas”, como Paulo VI que se desfez da riquíssima tiara que lhe ofertara, para a coroação, a gente milanesa, dando, em novembro de 1965, humana destinação àquele adorno pontifício. Mas, havia à sua disposição outras tiaras.
De tudo, de todas as formalidades e prerrogativas não há de Ele despojar-se, porque não é conveniente ao cabal desempenho de sua missão humano-pastoral...
O povo, a amassa, é muito sensível ao brilho faustoso das altas aristocracias. É um complexo, uma psicose humana. Como a boa esposa que se sacrifica – até na mesa – em benefício do esposo, dos filhos; assim, a massa, sem encarar as suas necessidades, é desprendida, dadivosa, contanto que seu guia, seu “chefe” brilhe e se firme. É o que se observa em momentos de exaltação democrática.
Viva o Papa!  Viva o Rei!  Viva o excelentíssimo Presidente da República! Viva o Governador do Estado! São os gritos que atordoam, saídos do fundo do coração. Ah! Como é inatingível a psicologia das multidões, quando sacudidas pelo verbo inflamado de hábil demagogo... O fanatismo, vez por outra, se instala no seio do povo inculto, tendo por objeto não somente o homem providencial, o taumaturgo, como até ladinos embusteiros. Porque suscitaram fascínio. Souberam suscitá-los.
Deixem-se aos frades mendicantes os excessos de desprendimentos. E, enquanto possível, conservem-se as tradições venerandas e os costumes seculares que os Papas santos e sábios, que os Bispos clarividentes e argutos, desconhecedores das teses, das anti-teses, dos corolários da moderna psicologia experimental e da sociologia, hoje tão celebradas, abraçaram empiricamente, sem escrúpulos, durante milênio e meio, sem propenderem para o endeusamento do homem, nem descambarem para a popularidade barata, para o aviltamento. Não censuremos o procedimento da Igreja dos passados séculos, como insipiente, inócuo e escandaloso, contrário aos princípios cristãos e à mesma Igreja. Deixemos isso para seus inimigos rancorosos. Que não são poucos.
A Idade Média tinha suas exigências, como a atualidade, o seu aggiornamento. Tenha-se em mira das nossas atenções as medidas que promanarem do Concílio Ecumênico Vaticano II, prestes a encerrar-se; desde a mudança da língua litúrgica (latina) para o idioma vernáculo de cada povo, até a modificação ou supressão das vestes talares e dos indumentos episcopais e levíticos, se a tanto chegarem as resoluções dos Excelentíssimos Padres Conciliares. Mas, seja-nos bem presente que admitir, facultar, permitir, tolerar e mesmo aconselhar não são sinônimos de ordenar e prescrever. Somente estes tem força coercitiva, os demais são fraquinhos ad libitum. Pois ninguém está obrigado a fazer uso de um privilégio, de prerrogativas.
Assim, (em hipótese), a Igreja poderá permitir que padres venham a ser dispensados do celibato, mas não creio que chegue a ordená-los a que se casem. A não ser a padres que já levem vida conjugal ou escandalosa; e isto, no sentido de reconduzi-los, caridosamente, à vida da graça. Só a polícia tem a presunção de “casar a força” namorados incontinentes; o que, além da contraproducente em seus efeitos familiares e sociais, esse “casamento a força” é simples formalidade legal, sem caráter religioso, sacramental. Por isso, quantos ao saírem da “chefatura” se vão desavindos e separados para toda a vida?
- E a maior vítima quem é?
- O filho nascituro.
Sempre andaremos em caminho certo, quando, guiados pelo bom senso, palmilharmos a média-vida. Bom senso e equilíbrio estável é o que começa a faltar nos dias angustiados em que vivemos; inquietos, uns; apavorados, outros, com os terríveis espectros da fome, do câncer e da destruição atômica, e  assim, vamos sendo esmagados pelo compressor do século XX.
E a vida continua... 

[1] Publicado em Vela de Sebo, 1965

sábado, 23 de junho de 2012

Os olhos vêem as aparências - I



Os olhos vêem as aparências[1]

I
O vestuário eclesiástico, no correr dos vinte séculos, passou por muitas reformas, grandes modificações; desde a rude estamenha dos monges, até a pomposa indumentária dos senhores cardeais, - príncipes que são da Igreja e nobres de países católicos, com honras de Estado.  Reconheçamos de pronto que esta alta nobreza, periclita. Que esses brasões estão muito esmaecidos e tendem ao completo desaparecimento, ante o mundo moderno, cujo espírito é igualitário e democrático, desde os primórdios da Revolução Francesa.
Hoje, muitos – até padres dernier-cri - se dão ao vezo de censurar o fausto cardinalício, também bispos avançados pregam profundas reformas nos envelhecidos costumes da Igreja, como contrários ao espírito evangélico, a começar pela púrpura das batinas com suas caudas de seis metros, ao rendado finíssimo dos roquetes e alvas, à maciez das murças de arminho, ao fulgor aurífero de cruzes peitorais, (que supomos sempre engastadas de ametistas e topázios), à baga preciosa dos anéis, ao peso dos báculos artísticos, à magnificência das mitras aurifrigidas... Toda aquela pompa posta em uso, e cuidadosamente conservada, séculos em fora, para o máximo esplendor da Sponsa Christi .
Não discuto o mérito da questão, já que toda questão religiosa entre católicos termina com inapelável decisão da Cúria Romana. E aqui não abro polêmica, como coisa proibida e ineficaz. Mas, pelo que vejo e posso compreender, alguns há que querem ir de jato de um pólo a outro pólo, quando bem podiam contentar-se com a transição, a passo estugado, dum trópico a outro, que é mais curta distância.
Alguém me asseverou que, se S. Paulo vivesse na atualidade, faria suas viagens apostólicas em Electra 2 ou de Boeing 707  e não de barcos à vela e remo como as fez; querendo, intempestivamente, justificar as famosas viagens de Paulo VI, a quem ninguém censurou por elas. Que Cristo seria habitué das emissoras e das televisões, se hoje palmilhasse as terras empobrecidas da Palestina. Ora, isto, me parece, não sairá do plano das hipóteses, pois S. Paulo não voltará à terra, e Jesus Cristo só virá no último dia, em glória e majestade.
Nem iria eu, mísero mortal, censurar as medidas modernas, oportunas e sensatas. Pois, é certo que cada época tem seus costumes, seus meios de locomoção e de disseminação das idéias, sua indumentária, sua ambiência social. Daí, a grande dificuldade que sentimos em aquilatar, hoje, o orgulho de sangue e os foros de nobreza dos príncipes e áulicos leigos e eclesiásticos dos séculos passados. Mas, a Igreja não é um corpo fossilizado. Antes, é organismo vivo que precisa de reformas adequadas à sua manutenção e progresso. Não somos contra elas. As, estranhamos os abusos introduzidos por conta delas.
Como se peca freqüentemente, tanto por excesso como por deficiência, ouvindo-se a sabedoria que nos diz que a virtude está no meio, abracemos este meio termo. Vistam-se, pois, reis, príncipes e bispos, como a bispos, príncipes e reis é conveniente vestirem-se. Sem excessivas pompas e exagerados luxos, que ofendem a indigência de grande número de seus concidadãos, sua fome e nudez; mas, não sem a dignidade de  seus altos encargos, já que assim é de toda a conveniência à aristocracia e à sociedade humana inteira.
Ilustrando a crônica, transcrevo passagem interessante de Baú Velho, quando Viriato Correa narra o jantar do Imperador Pedro II, em casa de Vitor Hugo.
Achando-se o poeta e seu nobilíssimo comensal em palestra, entra na sala uma amável netinha daquele. Pede o Imperador seja apresentado à demoiselle: Então, “Vitor, com ternura de avô que quer deslumbrar a neta, dá um tom solene à voz:
- Jeanne, apresento-te o Imperador do Brasil!
A menina fita o monarca, surpreendida, e diz ingenuamente:
 - Mas ele não tem a vestimenta.”
Então houve risos, diz o escritor.
Um nobre, - príncipe ou alto dignitário – que se apresente em solenidades públicas com trajes plebeus, e em desalinho, mesmo sendo de espírito democrático, corre o risco de que lhe percam o respeito e a obediência. E o contato direto, constante e desnecessário com a plebe rouba-lhe grande parte do respeito que lhe é devido. Talvez por isso haja tanta crise de autoridade. E a razão manifesta é que, tendo graves defeitos (também os nobres e os bispos os têm), defeitos inerentes à humana fragilidade, o diuturno manuseio da massa faz desaparecer a aura de misticismo e de nobreza que convém seja conservada para o bom andamento das cortes ou aulas, e das cúrias.

Quem tem brasão e palácio, por que não ter vida palaciana? Dizem os franceses: Noblesse oblige. E obriga com grandes incômodos. Há alguma verossimilhança entre um palácio e uma gaiola de ouro. Ambos são ergástulos aurifulgentes.
Com efeito. Que respeito importará, que admiração e estima despertarão, nos fiéis, bispos e párocos que se não deem a apreço, mesmo fora dos atos litúrgicos? Por isso a Santa Sé não vai escolher bispos entre gente sem boa estirpe, como são os filhos adulterinos e bastardos, sem boa presença ou com defeitos físicos, de porte ridículo, ainda que santos e sábios. Ordinariamente, busca-os entre os melhores elementos do clero, os mais capazes, saudáveis, de feições especiosas, se possível. Só a países africanos dá bispos negros, e já um ou outro cardeal, para conquistar para si a simpatia daqueles povos. Alguma razão grave há para tudo isso: a tentativa de facilitação do apostolado.
Entre nós, povo amalgamado de vários sangues, livre de problemas raciais, um simples padre mulato, de beiços roxos, nariz chato, cabelos duros, quantos percalços terá que vencer?! Por isso...
Os olhos veem as aparências. E não se diga que as aparências são desprovidas de toda importância. Além do que, guarde-se decoro e o respeito em tudo o que se refira ao culto e seus ministros. Intimidades, graçolas de sentido dúbio, pilhérias de sabor picante, nem entre os da mesma igualha.
Lembra-me uma passagem interessante ocorrida na modesta episcopal residência de Dom Antônio dos Santos Cabral, quando era bispo do Rio Grande do Norte.
Chegou ao palácio, para falar com Dom Antônio, o Padre José de Calazans Pinheiro, que era alto, desembaraçado, voz clangorante Quase diria desabusado. Encontrou-o com visita. Mandado, porém, aproximar-se, cumprimentou o bispo dobrando o joelho, beijando-lhe o anel. Em seguida, adiantando-se à qualquer apresentação, virou-se para o outro eclesiástico (de estatura insignificante, de compleição raquítica), apertando-lhe simplesmente a destra e sacudindo-a com violência, como era de hábito muito seu, perguntou em timbre claro e voz prolatada:
- Com quem tenho a honra de falar, Senhor?
- Com José Tupinambá da Frota, bispo de Sobral.
À queima-roupa retrucou o Padre Calazans, fletindo o joelho:
- Tire esta cruz para fora; bote às claras os debruns vermelhos da batina, traga o solidéu; e o anel calce-o para que se saiba com quem se está falando, Senhor.
 Os bispos, quando fora de sua diocese, costumam viajar “in nigris” para evitar tropeços. Mas, as insígnias não pertencem à pessoa; são do cargo. Não são enfeites. Razão porque nenhuma falta de modéstia acarreta seu uso. As Forças Armadas também têm suas fardas para dias comuns, e as de gala, para as solenidades. As divisas e estrelas estão sempre em seus lugares. As medalhas, os colares, as condecorações e crachats não se fazem para os estojos de cetim. São para brilharem no peito dos heróis, nas ocasiões especiais.
Sim. Era justo. Todo delegado traga consigo suas credenciais, a fim de que seja tratado com merecem as altas investiduras, pois é, ridículo perguntar ou ser perguntado:
- Sabe você com quem está falando?
Ele, o Padre Calazans, falava com um prelado, homem de muita ilustração. Mas, o padre não era adivinho. Ninguém é adivinho.
Se você, leitor, amigo, vir aproximarem-se três concidadãos, um de batina, outro de farda, e um terceiro de gibão e perneiras, rebenque na mão e esporas nas botas, logo você ficará sabendo que um é clérigo; o outro, miliciano; e o terceiro, modesto vaqueiro do nosso sertão. Mas se os mesmos vierem chegando em mangas de camisa, ou traje corriqueiro, como identifica-los, sem antes se dar a incômodas investigações? São apenas três homens...
Conta-se como anedota que, tendo passado junto de um açude público, entrou na cidade uma mulher falando em altas vozes, muito contrafeita. Procurando a Autoridade do lugar saber o que lhe ocorrera, declarou-lhe que vira, no açude, um soldado nu tomando banho. À reclamante, muito admirado, inquiriu o Delegado:
- Se estava nu, como pôde concluir a senhora que se tratava de um miliciano?



                                                                                               (N. do E.: Há continuação) Publicada no post acima.


[1] Publicado em Vela de Sebo, 1965

quinta-feira, 21 de junho de 2012

Salvo melhor juízo




Salvo melhor juízo[1]

            Veio também o costume (que de começo, tanto me chocou) de padres seculares e até religiosos deixarem no prego as velhas batinas ou suas estamenhas para envergarem elegante clergyman, num país católico, há muito familiarizado com sotainas e buréis, como o nosso caro Brasil. Foi quando se insurgiu o abuso por parte de alguns (hoje, de muitos) de usarem calças e camisas esporte.
Concomitantemente, e como corolário, veio o costume de deixarem crescer a coroa. Alguns frades mendicantes já rasparam toda a cara com manifesta vantagem de higiene. Em contrapartida, já não fazem a tonsura. Para que, se o hábito e a tonsura nunca fizeram o monge? Mas, é certíssimo, identificavam-nos. E lhes ficavam tão bem... Também os nomes recebidos na profissão religiosos não significam muito. Observava Gilberto Freyre, em seu “A propósito de Frades” (pág 32):

“Sabemos que sob nomes seráficos de homens aparentemente só de Deus, chamados da Paz, dos Anjos, do Salvador, de Jesus, da Purificação, do Sacramento, de Santa Rosa, da própria Santíssima Trindade, agitaram-se políticos mais zelosos das liberdades do século que das verdades eternas; mais apegados a causas do momento que às de sempre; e que, sob nomes de servos de Maria, Virgem Santíssima, vibraram corações apaixonados, alguns deles, por marias apenas de carne e virgens somente da terra. Foram esses frades mais do mundo que do claustro; ou mais dos reis do que do Rei dos reis...”

Tratávamos daqueles costumes novos que, se permitidos por quem de direito – bispos e superiores religiosos – que teríamos a dizer em contrário, nós, modesto católico nominal? Nada! A propósito, lembra-me um episódio. Eu havia chegado ao Seminário Provincial de São Paulo – era ainda na Luz –com um atraso de vinte e quatro horas, para iniciar o curso trienal de filosofia. Os alunos já se achavam em retiro fechado. Estava, pois, conversando com o porteiro, quando se aproximou um clérigo, partilhando conosco da conversa. Pareceu-me muito moço. E, como quem procurava travar conhecimento, perguntei-lhe que ano ia cursar:
-Se você for para o 2º ano de filosofia, vamos fazer o curso juntos.
Deduzindo que se tratava de um filósofo, abri-me com toda franqueza. Foi quando, dando uma volta sobre os calcanhares, deixou ver, no alto da cabeça, bem feita coroa sacerdotal. (A tonsura dos menoristas era muito menor).
-          Ah! – disse-lhe – O senhor estava caçoando de mim. O senhor já é padre...
Sem nada retorquir, afastou-se, rindo. Na manhã seguinte, achando-se todo o seminário na capela para ouvir missa, eis que sobe o altar mor o meu interlocutor da véspera. Era o padre espiritual da casa e abalizado professor de filosofia, Pe. Paulo de Tarso Campos, hoje venerando arcebispo resignatário de Campinas, São Paulo.
            Logo que possível, fui até ele para pedir-lhe desculpas pelo qüiproquó.  Recebeu-me com indulgência e declarou-me:
-          Fiquei contente em parecer mais moço. Não se incomode com isso.
A coroa identificara o padre. Mas, a coroa clerical ou monacal já não tem caráter de necessidade – pelo que se vê – e tornou-se anacrônica, não estimada por muitos, que usam slack. Assim sendo, fosse abolido também o rito da prima tonsura, já que os clérigos de todas as ordens sacras deixaram-na cair em desuso. E faria isso com todo o necessário respeito. Sou levado a considerar a tonsura como merecedora de cair no olvido, traduzindo assim o pensamento alheio. Era um rito poético, cheio de simbolismo o da sua imposição, mas, se a tonsura não há de raspar-se nunca mais, no meu fraco entender, devia-se ser suprimida também a cerimônia da sua imposição; não havemos de multiplicar as coisas sem necessidade. Salvo melhor juízo.
[1] Publicado em Lume de Palha e Áscuas, 1969

terça-feira, 19 de junho de 2012

Medidas novas



Medidas novas[1]

            Ainda estou ouvindo um prelado que me dizia, quando da facultação de missas vespertinas: “Em minha diocese, não permitirei sejam rezadas missas vespertinas. Não vejo vantagem nisso” Era a repulsa natural de um conservador arraigado a qualquer novidade. Com o correr dos dias, vencido pela medida nova, permitiu missas vespertinas em sua própria catedral.
            Veio, depois, o caso das missas parcialmente recitadas em vernáculo, e o costume de celebrar o sacerdote virado para o povo, à semelhança do que ocorre nos cultos promovidos por nossos irmãos separados. (Não vejo inconveniência em adotarmos o que eles têm de bom). O Hábito de dialogar a missa, ao invés do que até então era praxe: cada um entregar-se às suas devoções particulares, num sentido individualista. É bem verdade que o “coroinha” encarnava a assembléia eclesial, unindo a todos em sua humilde pessoa, representando-os.
Veio o costume de comungarem os fiéis, de pé, ante ao altar (não deve ser esquecida a genuflexão ao aproximar-se o comungante), prescindindo da velha mesa de comunhão, tão desconforme com a mesa do cenáculo usada por Cristo e seus comensais.  
Veio o costume de rezar-se o próprio Cânon da missa em voz audível quando há tantos séculos o era submissa voce.  Outras inovações vão se consubstanciando, com proveito real ou sem proveito prático.
O texto latino, cedendo lugar ao texto vernáculo, trouxe melhor entendimento da ação litúrgica aos fiéis atrasadíssimos e pouco interessados em coisas da religião. As imagens, algumas tão lindas e artísticas, vão sendo retiradas de altares e nichos com discrição e cuidado, parecendo um esforço de remover de entre cristãos alguns obstáculos  que os têm mantendo ainda afastados uns dos outros, - católicos e evangélicos – quando somos todos irmãos. Algumas igrejas e capelas, efetivamente, tinham em seus altares uma pletora de imagens...
O próprio altar-mor das catedrais, caído em desuso, vais sendo demolido para dar lugar ao trono do Ordinário, que fica melhor instalado face a face com o rebanho de quem é modelo a ser imitado. Com isso talvez o velho faldistório venha a ser esquecido.
As casulas romanas, comuns ainda há vinte anos, cederam sua vez às casulas góticas, tão ao gosto atual. Reconheçamos que o gótico é mais solene. Alfaias e vasos litúrgicos vão tomando feição antiga. Não apenas o altar do sacrifício. Ritos antigos vão sendo restaurados em sua primeva simplicidade.
Medida novíssima, e do melhor bom-senso, é a que está exigindo de bispos e párocos setuagenários deixem de mãos mais firmes o governo das dioceses e freguesias, pela renúncia voluntária dos velhos ocupantes. As múltiplas atividades hodiernas dos pastores trazem essa conseqüência que tem sentido de justiça. O homem que deu de si tudo o que nele havia, durante quarenta longos anos, e bem vividos, é natural que tenha seu merecido repouso remunerado. Mas esse repouso não é inatividade absoluta, senão muito relativa. Ajudaria, na medida do possível, seu substituto. É indiscutível que um pastor jovem, cheio de vigor, seja mais eficiente no apascento e guarda da grei. De antemão se sabe que haverá homens apegados demasiadamente ao múnus pastoral e – por que não dizê-lo? – às prerrogativas do seu sagrado ofício que, sem grandes constrangimentos, não hão de entregar as rédeas do governo, malgrado sua debilidade, canseira e outros impedimentos que doenças graves lhes acarretem. Mas, com sinceridade, que pode fazer um octogenário, um nonagenário, senão impedir a marcha do rebanho ou atrapalhar seu bom andamento? Esta não deixa de ser uma das melhores inovações pós-conciliares. Para os que se não querem sujeitar a ela, há o recurso de um rescrito que conceda a um auxiliar ou coadjutor o governo sede plena[2].
E a vida continua...


[1] Publicado em Lume de Palha e Áscuas, 1969
[2] Significa que o novo pároco tem a seu cargo toda a gestão da vida da Diocese, por incumbência da Santa Sé, sem que se encontre vaga a sede episcopal.

Apresentando



    Honório Ribeiro Dantas nasceu em Ceará-Mirim, Rio Grande do Norte em 1907 no dia 25 de maio de e faleceu em Natal em 1980 no dia 10 de fevereiro.
    É comum, na família, se dizer que se hoje vivesse, ele muito produziria com a nossa tão atual ferramenta chamada informática, e muito difundiria seus pensamentos com a Internet. Não teve a oportunidade de viver nossos dias, mas não se deixou abater pelas dificuldades do seu tempo, e escreveu, compôs, linotipou e imprimiu muitos de seus escritos em jornais e livros onde deixou bem claro o seu pensamento e suas emoções. Comecei tarde a ler os escritos de meu avô. Nada mais natural que isso acontecesse dessa forma, uma vez que ele não escrevia para crianças. Seus escritos, publicados ou não, eram crônicas nas quais ele exibia bem o que passava no seu íntimo e em sua mentalidade embotada, como ele mesmo dizia. Opiniões geralmente ácidas como ele. Não obstante de ele ser uma pessoa amorosa, não dispensava uma dose – às vezes exagerada – de crítica ao que considerava errado ou destoante do caminho correto. Era de paixões irascíveis. 
    Em seu livro O Facho,(1965) escreve sobre um encontro que teve com João Mohana, e expõe: “quando aprecio e amo, amo e aprecio sem medida, com cegueira. Capaz de fazer maus bons, no meu conceito”.Em 1957 escrevia uma crônica intitulada “Simões Baruncho” onde expunha sua alegria ao descobrir na biblioteca do Seminário Provincial de São Paulo, em 1917, um livro intitulado Centúria Métrica de sonetos sobre a Paixão, Morte e Sepultura de Jesus Cristo. Havia sido escrito por um presbítero, o padre Manoel Simões Baruncho no ano de 1745. Incomodou-lhe, deveras, o estado lastimável do exemplar que encontrara, uma vez que estava já roído por traças. Não o impediu de anotar os sonetos. De caneta em punho e caderneta deu-se ao trabalho, hoje facilmente superável por uma máquina copiadora, de copiar cada soneto que lhe dava prazer em ler. Frustração enorme lhe acometeu por não poder ter tempo de concluir seu trabalho. Fora aconselhado a deixar o Seminário por iniciativa de seu mentor, o Padre Paulo de Tarso Campos, então conselheiro espiritual do Seminário. Lamentou por toda a vida não ter podido ler e deliciar-se com os sonetos que lhe faltaram copiar. Dos cem sonetos da obra, aborrecia-se por não ter conseguido copiar quinze. Hoje, num simples toque do teclado temos às nossas mãos a obra completa que ele tanto desejou. Veja a Centuria Metrica aqui.
    Em muitas de suas crônicas, estavam a Igreja, a religião e as principais personagens desse mundo, quais sejam padres, bispos, arcebispos e fiéis. Essa foi a tônica de sua vida, afinal. Discorreu muito sobre relacionamentos conjugais e sociais. Dizia ter vício na leitura, mas ao que parece, a escrita não lhe era menos prazerosa. Escreveu durante anos. Décadas para ser mais justo. Seus livros tinham como título, sugestivos fenômenos luminosos, que ele queria que se transformassem em guias para seus leitores. O Facho (1965), Vela de Sebo (1965), Lume de Palha e Áscuas (1969), A Sombra, foram alguns. Outros foram explícitos no seu intento: Em Prol da Igreja, Do Sacramento, da Ordem e Seu Ritual (1952) sob o pseudônimo de Miles Christi e O Antístete, Sua Tarefa e Seus Auxiliares (1962) com diversas partes escritas na década de 30. Um outro, intitulado Últimas Crônicas teve data de 1970. Escolhi umas tantas crônicas encontradas em seus diversos livros. 
  Ao longo de sua vida foi conservador de seu pensamento, mesmo quando se considerava medíocre e tacanho. Assim era ele. Vivia a vida rememorando a cada novo dia, os bons e maus momentos vividos nos dias passados. Em Lume de Palha e Áscuas ele escreve: “A memória infantil é um escrínio(*) virgem onde se acumulam com fidelidade todas as emoções da meninice. É a matriz da saudade”. Caso tenha mudado ao longo de décadas de vida foi para se conscientizar que fora muito condescendente com alguns homens e mulheres que fazem o clero. Desiludiu-se e frustrou-se por ter acreditado que eles eram dignos de fé. Nem todos o são. Ele descobriu isso e muito se magoou com tal descoberta. 
  Não acaba por aqui sua história. Na verdade ela continua através de suas criações. Seus filhos, netos e todos os outros descendentes e seus livros que mantém seu pensamento inquieto e perspicaz ao alcance de qualquer pessoa. É uma vela de sebo que, mesmo fraca e fumarando mais que iluminando, continua acesa.
(*) Escrínio -  Armário ou cofre para guardar papéis e utensílios de escrita; escrivaninha.