quinta-feira, 21 de junho de 2012

Salvo melhor juízo




Salvo melhor juízo[1]

            Veio também o costume (que de começo, tanto me chocou) de padres seculares e até religiosos deixarem no prego as velhas batinas ou suas estamenhas para envergarem elegante clergyman, num país católico, há muito familiarizado com sotainas e buréis, como o nosso caro Brasil. Foi quando se insurgiu o abuso por parte de alguns (hoje, de muitos) de usarem calças e camisas esporte.
Concomitantemente, e como corolário, veio o costume de deixarem crescer a coroa. Alguns frades mendicantes já rasparam toda a cara com manifesta vantagem de higiene. Em contrapartida, já não fazem a tonsura. Para que, se o hábito e a tonsura nunca fizeram o monge? Mas, é certíssimo, identificavam-nos. E lhes ficavam tão bem... Também os nomes recebidos na profissão religiosos não significam muito. Observava Gilberto Freyre, em seu “A propósito de Frades” (pág 32):

“Sabemos que sob nomes seráficos de homens aparentemente só de Deus, chamados da Paz, dos Anjos, do Salvador, de Jesus, da Purificação, do Sacramento, de Santa Rosa, da própria Santíssima Trindade, agitaram-se políticos mais zelosos das liberdades do século que das verdades eternas; mais apegados a causas do momento que às de sempre; e que, sob nomes de servos de Maria, Virgem Santíssima, vibraram corações apaixonados, alguns deles, por marias apenas de carne e virgens somente da terra. Foram esses frades mais do mundo que do claustro; ou mais dos reis do que do Rei dos reis...”

Tratávamos daqueles costumes novos que, se permitidos por quem de direito – bispos e superiores religiosos – que teríamos a dizer em contrário, nós, modesto católico nominal? Nada! A propósito, lembra-me um episódio. Eu havia chegado ao Seminário Provincial de São Paulo – era ainda na Luz –com um atraso de vinte e quatro horas, para iniciar o curso trienal de filosofia. Os alunos já se achavam em retiro fechado. Estava, pois, conversando com o porteiro, quando se aproximou um clérigo, partilhando conosco da conversa. Pareceu-me muito moço. E, como quem procurava travar conhecimento, perguntei-lhe que ano ia cursar:
-Se você for para o 2º ano de filosofia, vamos fazer o curso juntos.
Deduzindo que se tratava de um filósofo, abri-me com toda franqueza. Foi quando, dando uma volta sobre os calcanhares, deixou ver, no alto da cabeça, bem feita coroa sacerdotal. (A tonsura dos menoristas era muito menor).
-          Ah! – disse-lhe – O senhor estava caçoando de mim. O senhor já é padre...
Sem nada retorquir, afastou-se, rindo. Na manhã seguinte, achando-se todo o seminário na capela para ouvir missa, eis que sobe o altar mor o meu interlocutor da véspera. Era o padre espiritual da casa e abalizado professor de filosofia, Pe. Paulo de Tarso Campos, hoje venerando arcebispo resignatário de Campinas, São Paulo.
            Logo que possível, fui até ele para pedir-lhe desculpas pelo qüiproquó.  Recebeu-me com indulgência e declarou-me:
-          Fiquei contente em parecer mais moço. Não se incomode com isso.
A coroa identificara o padre. Mas, a coroa clerical ou monacal já não tem caráter de necessidade – pelo que se vê – e tornou-se anacrônica, não estimada por muitos, que usam slack. Assim sendo, fosse abolido também o rito da prima tonsura, já que os clérigos de todas as ordens sacras deixaram-na cair em desuso. E faria isso com todo o necessário respeito. Sou levado a considerar a tonsura como merecedora de cair no olvido, traduzindo assim o pensamento alheio. Era um rito poético, cheio de simbolismo o da sua imposição, mas, se a tonsura não há de raspar-se nunca mais, no meu fraco entender, devia-se ser suprimida também a cerimônia da sua imposição; não havemos de multiplicar as coisas sem necessidade. Salvo melhor juízo.
[1] Publicado em Lume de Palha e Áscuas, 1969

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