Os olhos vêem as aparências[1]
I
O vestuário eclesiástico, no correr dos vinte
séculos, passou por muitas reformas, grandes modificações; desde a rude
estamenha dos monges, até a pomposa indumentária dos senhores cardeais, -
príncipes que são da Igreja e nobres de países católicos, com honras de
Estado. Reconheçamos de pronto que esta
alta nobreza, periclita. Que esses brasões estão muito esmaecidos e tendem ao
completo desaparecimento, ante o mundo moderno, cujo espírito é igualitário e
democrático, desde os primórdios da Revolução Francesa.
Hoje, muitos – até padres dernier-cri -
se dão ao vezo de censurar o fausto cardinalício, também bispos avançados
pregam profundas reformas nos envelhecidos costumes da Igreja, como contrários
ao espírito evangélico, a começar pela púrpura das batinas com suas caudas de
seis metros, ao rendado finíssimo dos roquetes e alvas, à maciez das murças de
arminho, ao fulgor aurífero de cruzes peitorais, (que supomos sempre engastadas
de ametistas e topázios), à baga preciosa dos anéis, ao peso dos báculos
artísticos, à magnificência das mitras aurifrigidas... Toda aquela pompa posta
em uso, e cuidadosamente conservada, séculos em fora, para o máximo esplendor
da Sponsa Christi .
Não discuto o mérito da questão, já que toda questão
religiosa entre católicos termina com inapelável decisão da Cúria Romana. E
aqui não abro polêmica, como coisa proibida e ineficaz. Mas, pelo que vejo e
posso compreender, alguns há que querem ir de jato de um pólo a outro pólo,
quando bem podiam contentar-se com a transição, a passo estugado, dum trópico a
outro, que é mais curta distância.
Alguém me asseverou que, se S. Paulo vivesse na
atualidade, faria suas viagens apostólicas em Electra 2 ou de Boeing
707 e não de barcos à vela e remo
como as fez; querendo, intempestivamente, justificar as famosas viagens de
Paulo VI, a quem ninguém censurou por elas. Que Cristo seria habitué das
emissoras e das televisões, se hoje palmilhasse as terras empobrecidas da
Palestina. Ora, isto, me parece, não sairá do plano das hipóteses, pois S.
Paulo não voltará à terra, e Jesus Cristo só virá no último dia, em glória e
majestade.
Nem iria eu, mísero mortal, censurar as medidas
modernas, oportunas e sensatas. Pois, é certo que cada época tem seus costumes,
seus meios de locomoção e de disseminação das idéias, sua indumentária, sua
ambiência social. Daí, a grande dificuldade que sentimos em aquilatar, hoje, o
orgulho de sangue e os foros de nobreza dos príncipes e áulicos leigos e
eclesiásticos dos séculos passados. Mas, a Igreja não é um corpo fossilizado. Antes,
é organismo vivo que precisa de reformas adequadas à sua manutenção e
progresso. Não somos contra elas. As, estranhamos os abusos introduzidos por
conta delas.
Como se peca freqüentemente, tanto por excesso como
por deficiência, ouvindo-se a sabedoria que nos diz que a virtude está no meio,
abracemos este meio termo. Vistam-se, pois, reis, príncipes e bispos, como a
bispos, príncipes e reis é conveniente vestirem-se. Sem excessivas pompas e
exagerados luxos, que ofendem a indigência de grande número de seus
concidadãos, sua fome e nudez; mas, não sem a dignidade de seus altos encargos, já que assim é de toda a
conveniência à aristocracia e à sociedade humana inteira.
Ilustrando a crônica, transcrevo passagem
interessante de Baú Velho, quando Viriato Correa narra o jantar do
Imperador Pedro II, em casa de Vitor Hugo.
Achando-se o poeta e seu nobilíssimo comensal em
palestra, entra na sala uma amável netinha daquele. Pede o Imperador seja
apresentado à demoiselle: Então, “Vitor, com ternura de avô que quer
deslumbrar a neta, dá um tom solene à voz:
- Jeanne, apresento-te o Imperador do Brasil!
A menina fita o monarca, surpreendida, e diz
ingenuamente:
- Mas ele não
tem a vestimenta.”
Então houve risos, diz o escritor.
Um nobre, - príncipe ou alto dignitário – que se
apresente em solenidades públicas com trajes plebeus, e em desalinho, mesmo
sendo de espírito democrático, corre o risco de que lhe percam o respeito e a
obediência. E o contato direto, constante e desnecessário com a plebe rouba-lhe
grande parte do respeito que lhe é devido. Talvez por isso haja tanta crise de
autoridade. E a razão manifesta é que, tendo graves defeitos (também os nobres
e os bispos os têm), defeitos inerentes à humana fragilidade, o diuturno
manuseio da massa faz desaparecer a aura de misticismo e de nobreza que convém
seja conservada para o bom andamento das cortes ou aulas, e das cúrias.
Os bispos, quando fora de sua diocese, costumam
viajar “in nigris” para evitar tropeços. Mas, as insígnias não pertencem à pessoa;
são do cargo. Não são enfeites. Razão porque nenhuma falta de modéstia acarreta
seu uso. As Forças Armadas também têm suas fardas para dias comuns, e as de
gala, para as solenidades. As divisas e estrelas estão sempre em seus lugares.
As medalhas, os colares, as condecorações e crachats não se fazem para os
estojos de cetim. São para brilharem no peito dos heróis, nas ocasiões
especiais.
(N. do E.: Há continuação) Publicada no post acima.
Quem tem brasão e palácio, por que não ter vida
palaciana? Dizem os franceses: Noblesse
oblige. E obriga com grandes incômodos. Há alguma verossimilhança entre um
palácio e uma gaiola de ouro. Ambos são ergástulos aurifulgentes.
Com efeito. Que respeito importará, que admiração e
estima despertarão, nos fiéis, bispos e párocos que se não deem a apreço, mesmo
fora dos atos litúrgicos? Por isso a Santa Sé não vai escolher bispos entre
gente sem boa estirpe, como são os filhos adulterinos e bastardos, sem boa
presença ou com defeitos físicos, de porte ridículo, ainda que santos e sábios.
Ordinariamente, busca-os entre os melhores elementos do clero, os mais capazes,
saudáveis, de feições especiosas, se possível. Só a países africanos dá bispos
negros, e já um ou outro cardeal, para conquistar para si a simpatia daqueles
povos. Alguma razão grave há para tudo isso: a tentativa de facilitação do
apostolado.
Entre nós, povo amalgamado de vários sangues, livre
de problemas raciais, um simples padre mulato, de beiços roxos, nariz chato,
cabelos duros, quantos percalços terá que vencer?! Por isso...
Os olhos veem as aparências. E não se diga que as
aparências são desprovidas de toda importância. Além do que, guarde-se decoro e
o respeito em tudo o que se refira ao culto e seus ministros. Intimidades,
graçolas de sentido dúbio, pilhérias de sabor picante, nem entre os da mesma
igualha.
Lembra-me uma passagem interessante ocorrida na
modesta episcopal residência de Dom Antônio dos Santos Cabral, quando era bispo
do Rio Grande do Norte.
Chegou ao palácio, para falar com Dom Antônio, o
Padre José de Calazans Pinheiro, que era alto, desembaraçado, voz clangorante Quase
diria desabusado. Encontrou-o com visita. Mandado, porém, aproximar-se,
cumprimentou o bispo dobrando o joelho, beijando-lhe o anel. Em seguida,
adiantando-se à qualquer apresentação, virou-se para o outro eclesiástico (de
estatura insignificante, de compleição raquítica), apertando-lhe simplesmente a
destra e sacudindo-a com violência, como era de hábito muito seu, perguntou em
timbre claro e voz prolatada:
- Com quem tenho a honra de falar, Senhor?
- Com José Tupinambá da Frota, bispo de Sobral.
À queima-roupa retrucou o Padre Calazans, fletindo o
joelho:
- Tire esta cruz para fora; bote às claras os debruns
vermelhos da batina, traga o solidéu; e o anel calce-o para que se saiba com
quem se está falando, Senhor.
Sim. Era justo. Todo delegado traga consigo suas
credenciais, a fim de que seja tratado com merecem as altas investiduras, pois
é, ridículo perguntar ou ser perguntado:
- Sabe você com quem está falando?
Ele, o Padre Calazans, falava com um prelado, homem
de muita ilustração. Mas, o padre não era adivinho. Ninguém é adivinho.
Se você, leitor, amigo, vir aproximarem-se três
concidadãos, um de batina, outro de farda, e um terceiro de gibão e perneiras,
rebenque na mão e esporas nas botas, logo você ficará sabendo que um é clérigo;
o outro, miliciano; e o terceiro, modesto vaqueiro do nosso sertão. Mas se os
mesmos vierem chegando em mangas de camisa, ou traje corriqueiro, como identifica-los,
sem antes se dar a incômodas investigações? São apenas três homens...
Conta-se como anedota que, tendo passado junto de um
açude público, entrou na cidade uma mulher falando em altas vozes, muito
contrafeita. Procurando a Autoridade do lugar saber o que lhe ocorrera,
declarou-lhe que vira, no açude, um soldado nu tomando banho. À reclamante,
muito admirado, inquiriu o Delegado:
- Se estava nu, como pôde concluir a senhora que se
tratava de um miliciano?
(N. do E.: Há continuação) Publicada no post acima.
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