sábado, 23 de junho de 2012

Os olhos vêem as aparências - I



Os olhos vêem as aparências[1]

I
O vestuário eclesiástico, no correr dos vinte séculos, passou por muitas reformas, grandes modificações; desde a rude estamenha dos monges, até a pomposa indumentária dos senhores cardeais, - príncipes que são da Igreja e nobres de países católicos, com honras de Estado.  Reconheçamos de pronto que esta alta nobreza, periclita. Que esses brasões estão muito esmaecidos e tendem ao completo desaparecimento, ante o mundo moderno, cujo espírito é igualitário e democrático, desde os primórdios da Revolução Francesa.
Hoje, muitos – até padres dernier-cri - se dão ao vezo de censurar o fausto cardinalício, também bispos avançados pregam profundas reformas nos envelhecidos costumes da Igreja, como contrários ao espírito evangélico, a começar pela púrpura das batinas com suas caudas de seis metros, ao rendado finíssimo dos roquetes e alvas, à maciez das murças de arminho, ao fulgor aurífero de cruzes peitorais, (que supomos sempre engastadas de ametistas e topázios), à baga preciosa dos anéis, ao peso dos báculos artísticos, à magnificência das mitras aurifrigidas... Toda aquela pompa posta em uso, e cuidadosamente conservada, séculos em fora, para o máximo esplendor da Sponsa Christi .
Não discuto o mérito da questão, já que toda questão religiosa entre católicos termina com inapelável decisão da Cúria Romana. E aqui não abro polêmica, como coisa proibida e ineficaz. Mas, pelo que vejo e posso compreender, alguns há que querem ir de jato de um pólo a outro pólo, quando bem podiam contentar-se com a transição, a passo estugado, dum trópico a outro, que é mais curta distância.
Alguém me asseverou que, se S. Paulo vivesse na atualidade, faria suas viagens apostólicas em Electra 2 ou de Boeing 707  e não de barcos à vela e remo como as fez; querendo, intempestivamente, justificar as famosas viagens de Paulo VI, a quem ninguém censurou por elas. Que Cristo seria habitué das emissoras e das televisões, se hoje palmilhasse as terras empobrecidas da Palestina. Ora, isto, me parece, não sairá do plano das hipóteses, pois S. Paulo não voltará à terra, e Jesus Cristo só virá no último dia, em glória e majestade.
Nem iria eu, mísero mortal, censurar as medidas modernas, oportunas e sensatas. Pois, é certo que cada época tem seus costumes, seus meios de locomoção e de disseminação das idéias, sua indumentária, sua ambiência social. Daí, a grande dificuldade que sentimos em aquilatar, hoje, o orgulho de sangue e os foros de nobreza dos príncipes e áulicos leigos e eclesiásticos dos séculos passados. Mas, a Igreja não é um corpo fossilizado. Antes, é organismo vivo que precisa de reformas adequadas à sua manutenção e progresso. Não somos contra elas. As, estranhamos os abusos introduzidos por conta delas.
Como se peca freqüentemente, tanto por excesso como por deficiência, ouvindo-se a sabedoria que nos diz que a virtude está no meio, abracemos este meio termo. Vistam-se, pois, reis, príncipes e bispos, como a bispos, príncipes e reis é conveniente vestirem-se. Sem excessivas pompas e exagerados luxos, que ofendem a indigência de grande número de seus concidadãos, sua fome e nudez; mas, não sem a dignidade de  seus altos encargos, já que assim é de toda a conveniência à aristocracia e à sociedade humana inteira.
Ilustrando a crônica, transcrevo passagem interessante de Baú Velho, quando Viriato Correa narra o jantar do Imperador Pedro II, em casa de Vitor Hugo.
Achando-se o poeta e seu nobilíssimo comensal em palestra, entra na sala uma amável netinha daquele. Pede o Imperador seja apresentado à demoiselle: Então, “Vitor, com ternura de avô que quer deslumbrar a neta, dá um tom solene à voz:
- Jeanne, apresento-te o Imperador do Brasil!
A menina fita o monarca, surpreendida, e diz ingenuamente:
 - Mas ele não tem a vestimenta.”
Então houve risos, diz o escritor.
Um nobre, - príncipe ou alto dignitário – que se apresente em solenidades públicas com trajes plebeus, e em desalinho, mesmo sendo de espírito democrático, corre o risco de que lhe percam o respeito e a obediência. E o contato direto, constante e desnecessário com a plebe rouba-lhe grande parte do respeito que lhe é devido. Talvez por isso haja tanta crise de autoridade. E a razão manifesta é que, tendo graves defeitos (também os nobres e os bispos os têm), defeitos inerentes à humana fragilidade, o diuturno manuseio da massa faz desaparecer a aura de misticismo e de nobreza que convém seja conservada para o bom andamento das cortes ou aulas, e das cúrias.

Quem tem brasão e palácio, por que não ter vida palaciana? Dizem os franceses: Noblesse oblige. E obriga com grandes incômodos. Há alguma verossimilhança entre um palácio e uma gaiola de ouro. Ambos são ergástulos aurifulgentes.
Com efeito. Que respeito importará, que admiração e estima despertarão, nos fiéis, bispos e párocos que se não deem a apreço, mesmo fora dos atos litúrgicos? Por isso a Santa Sé não vai escolher bispos entre gente sem boa estirpe, como são os filhos adulterinos e bastardos, sem boa presença ou com defeitos físicos, de porte ridículo, ainda que santos e sábios. Ordinariamente, busca-os entre os melhores elementos do clero, os mais capazes, saudáveis, de feições especiosas, se possível. Só a países africanos dá bispos negros, e já um ou outro cardeal, para conquistar para si a simpatia daqueles povos. Alguma razão grave há para tudo isso: a tentativa de facilitação do apostolado.
Entre nós, povo amalgamado de vários sangues, livre de problemas raciais, um simples padre mulato, de beiços roxos, nariz chato, cabelos duros, quantos percalços terá que vencer?! Por isso...
Os olhos veem as aparências. E não se diga que as aparências são desprovidas de toda importância. Além do que, guarde-se decoro e o respeito em tudo o que se refira ao culto e seus ministros. Intimidades, graçolas de sentido dúbio, pilhérias de sabor picante, nem entre os da mesma igualha.
Lembra-me uma passagem interessante ocorrida na modesta episcopal residência de Dom Antônio dos Santos Cabral, quando era bispo do Rio Grande do Norte.
Chegou ao palácio, para falar com Dom Antônio, o Padre José de Calazans Pinheiro, que era alto, desembaraçado, voz clangorante Quase diria desabusado. Encontrou-o com visita. Mandado, porém, aproximar-se, cumprimentou o bispo dobrando o joelho, beijando-lhe o anel. Em seguida, adiantando-se à qualquer apresentação, virou-se para o outro eclesiástico (de estatura insignificante, de compleição raquítica), apertando-lhe simplesmente a destra e sacudindo-a com violência, como era de hábito muito seu, perguntou em timbre claro e voz prolatada:
- Com quem tenho a honra de falar, Senhor?
- Com José Tupinambá da Frota, bispo de Sobral.
À queima-roupa retrucou o Padre Calazans, fletindo o joelho:
- Tire esta cruz para fora; bote às claras os debruns vermelhos da batina, traga o solidéu; e o anel calce-o para que se saiba com quem se está falando, Senhor.
 Os bispos, quando fora de sua diocese, costumam viajar “in nigris” para evitar tropeços. Mas, as insígnias não pertencem à pessoa; são do cargo. Não são enfeites. Razão porque nenhuma falta de modéstia acarreta seu uso. As Forças Armadas também têm suas fardas para dias comuns, e as de gala, para as solenidades. As divisas e estrelas estão sempre em seus lugares. As medalhas, os colares, as condecorações e crachats não se fazem para os estojos de cetim. São para brilharem no peito dos heróis, nas ocasiões especiais.
Sim. Era justo. Todo delegado traga consigo suas credenciais, a fim de que seja tratado com merecem as altas investiduras, pois é, ridículo perguntar ou ser perguntado:
- Sabe você com quem está falando?
Ele, o Padre Calazans, falava com um prelado, homem de muita ilustração. Mas, o padre não era adivinho. Ninguém é adivinho.
Se você, leitor, amigo, vir aproximarem-se três concidadãos, um de batina, outro de farda, e um terceiro de gibão e perneiras, rebenque na mão e esporas nas botas, logo você ficará sabendo que um é clérigo; o outro, miliciano; e o terceiro, modesto vaqueiro do nosso sertão. Mas se os mesmos vierem chegando em mangas de camisa, ou traje corriqueiro, como identifica-los, sem antes se dar a incômodas investigações? São apenas três homens...
Conta-se como anedota que, tendo passado junto de um açude público, entrou na cidade uma mulher falando em altas vozes, muito contrafeita. Procurando a Autoridade do lugar saber o que lhe ocorrera, declarou-lhe que vira, no açude, um soldado nu tomando banho. À reclamante, muito admirado, inquiriu o Delegado:
- Se estava nu, como pôde concluir a senhora que se tratava de um miliciano?



                                                                                               (N. do E.: Há continuação) Publicada no post acima.


[1] Publicado em Vela de Sebo, 1965

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